Folha de S.Paulo

ANÁLISE Roteiro visto por Moscou se cumpre, e guerra deixa de ser civil

- IGOR GIELOW

Os dramáticos desenvolvi­mentos na nova etapa do conflito na Síria escancaram o fato de que aquela guerra já deixou de ser civil há tempos, com camadas interligad­as de choques geopolític­os sérios.

Após a entrada em campo da Turquia no norte do país, o estopim agora é o ataque químico atribuído à ditadura de Bashar al-Assad, apoiada pela Rússia e pelo Irã.

No dia 13 de março, as Forças Armadas russas haviam dito ter identifica­do uma trama para o uso de armas químicas por rebeldes anti-Assad visando justificar um ataque americano a Damasco.

A versão veio com uma advertênci­a, reforçada pelo chanceler Serguei Lavrov: se soldados de Moscou na Síria, onde desde 2015 viraram a então guerra civil em favor do ditador, fossem alvejados, haveria retaliação.

Das duas, uma: ou Moscou já previa o uso de armas químicas e planejou uma narrativa preventiva, ou falava a verdade. Seja o que for, o ro- teiro está em curso, e a última coisa de que o mundo precisa é de uma troca de tiros entre russos e americanos.

Se esse último cenário é improvável por apocalípti­co e porque Donald Trump é o rei da bravata, cabe lembrar que o presidente que lançou mísseis contra uma base síria após ataque químico semelhante em 2017 agora está cercado por assessores linha-dura —daí talvez o tom ameaçador de que “Putin vai pagar”.

Novidade no contexto, Trump foi instigado pela retaliação do aliado Israel, que deixou de ser um ator de bastidor e começa a lutar às claras contra o que considera uma questão existencia­l: a influência do Irã na Síria.

Trump havia dito que queria deixar a Síria, onde mantém 2.000 homens de forças especiais. Agora, se coloca prazos públicos para decidir sobre um ataque a Assad.

Para Israel, que já vinha intensific­ando ataques diretos contra Damasco neste ano, a lógica é simples.

As forças do Hizbullah libanês, milícia armada por Teerã, atuam na campanha sí- ria e podem acabar estacionad­as na região próxima do Golã ocupado por Tel Aviv.

Com isso, haveria duas frentes possíveis para um eventual ataque a Israel. É um cenário politicame­nte inaceitáve­l para os israelense­s, devido ao custo civil e à impossibil­idade de derrota do Hizbullah senão com uma invasão e ocupação de território libanês e sírio —e nem se fala aqui numa ação combinada com os palestinos do Hamas em Gaza, igualmente apoiados por Teerã.

O fato de Israel ter sido de- nunciado por Lavrov pelo ataque é outra novidade, já que Moscou fazia vista grossa às ações do país.

O destroçame­nto da relação entre Rússia e Ocidente não ajuda. A reação coordenada do Ocidente no caso do espião envenenado no Reino Unido já sugeria uma inflexão, de resto útil para espanar as suspeitas de ajuda russa a Trump.

A linha de Moscou já é pública, e Trump será testado. Se atacar e cometer erros, arrisca uma escalada. Se não atacar, Israel tende a agir mais intensamen­te. Exceto que um coelho diplomátic­o surja de alguma cartola, será escolher entre dois males.

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