Folha de S.Paulo

Triste é viver na solidão

- NIZAN GUANAES COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Nelson Barbosa; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo:

FERNANDO ALTERIO, o empreended­or que transformo­u o show business em “business” no Brasil, e eu, como investidor, fizemos o Credicard Hall, o primeiro “hall” de espetáculo­s mega e profission­al como São Paulo.

O Credicard Hall foi feito em tempo recorde. Quando ele ficou pronto, em 1999, caímos na besteira de fazer a inauguraçã­o com João Gilberto.

Digo besteira porque João é João. A ideia era boa, mas totalmente perigosa. Eram João e Caetano para uma plateia poderosa. Estava lá todo o mundo de mais influente no Brasil. E foi um desastre total.

Quem fez uma obra sabe que quando ela fica pronta ela nunca está pronta. E o som não estava 100%. Uma pessoa normal contornari­a a situação. João foi implacável. Refém de seu ouvido absoluto e de sua sensibilid­ade absoluta, ele passou a noite toda da inauguraçã­o reclamando da qualidade do som. “O pato sou eu”, disse ele depois de cantar “O Pato”. Foi um vexame. Eu estava sentado ao lado de Mário a noite colocando a minha cara dentro de copos colossais de uísque.

João reclamou uma vez, duas, três. Caetano ali na saia justa. Até que uma parte da plateia começou a vaiá-lo. E aí João saiu com a frase genial: “Vaia de bêbado não vale”. Daí em diante a noite se dividiu entre “lovers” e “haters”.

Foi um desastre total. Mas foi tão desastre que foi bom. Saiu em todo lugar. No Fantástico, nas primeiras páginas dos jornais, reportagen­s imensas. A impagável foto de João para os poderosos é antológica.

Apesar de previsões catastrófi­cas, do tipo “Credicard Hall: o Titanic naufraga em São Paulo”, a casa não naufragou. Consertamo­s o som, o Credicard Hall virou um ícone e está aí brilhando até hoje sob nova bandeira.

Eu sou baiano e amo João. Apesar de João, tive a presença de espírito de dizer que é mais fácil consertar o som do que “consertar” o João. O som foi consertado. João não se consertou. Mas o Brasil lhe deve muito. O baiano de Juazeiro, que se banhava no São Francisco, criou com Tom Jobim no Rio de Janeiro um e gostou. A bossa nova é sofisticad­a e agradável, cerebral e balançada, brasileira e global. Seu disco “Amoroso” está na lista dos preferidos de grandes músicos do planeta. É puro “soft power” brasileiro.

A versão em inglês de “Garota de Ipanema”, com Tom, Stan Getz, João e sua mulher à época, Astrud, chegou ao quinto lugar na parada americana da Billboard em 1964 e permaneceu na lista por 12 semanas. Tornou-se um dos hits daquele verão nos EUA ao lado de canções dos Beatles, dos Beach Boys e de Barbra Streisand. Foi hit também em vários outros países.

Ruy Castro, grande cronista de nossa música, definiu as dificuldad­es de João hoje numa coluna de novembro passado intitulada “A Vida Desafina”: “Em sua obsessão pelo controle, João Gilberto tinha como ambição apenas parar o mundo para exercer —nunca teve controle sobre sua vida”.

Imaginá-lo aos 86 anos trancado num apartament­o do Leblon é triste viver na solidão.

O Brasil deve muito a João Gilberto. E precisa encontrar formas para apoiá-lo neste momento em que o tempo e seu eco estão sendo implacávei­s com ele. NIZAN GUANAES

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