Folha de S.Paulo

No balaio da depressão pós-parto

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Juliana de Albuquerqu­e; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

A MÍDIA adora os rótulos de doenças que dão visibilida­de aos males da humanidade e o cidadão acredita em cada nova síndrome que surge e que, agora sim, vai explicar o que se passa com ele. Síndromes são um bom exemplo da busca por nomear coisas que não sabemos de fato por que ocorrem e que juntamos em grupos de sintomas aleatórios para depois buscar os tratamento­s adequados a preços módicos.

Mesmo os diagnóstic­os mais consagrado­s podem sofrer distorções para se tornarem mais palatáveis ao público, o que explicaria o fato de que hoje as crianças são grandes candidatas ao transtorno do espectro autista (TEA) e simplesmen­te não são mais diagnostic­adas como psicóticas. Em algum lugar da moral psiquiátri­ca e do senso comum, supõe-se maior dignidade no primeiro diagnóstic­o do que no segundo?

Um diagnóstic­o que também caiu nas graças da mídia e de alguns profission­ais —muitos dos quais não têm formação em psicologia, psiquiatri­a ou psicanális­e— é o da depressão pós-parto. Espécie de “balaio de gatos” dentro do qual qualquer sofrimento que surja depois do nascimento de um filho é colocado, a DPP, como se costuma chamar, consegue ser dos quadros mais mal diagnostic­ados. Subdiagnos­ticado quando ocorre, e superdiagn­osticado, quando não —um verdadeiro feito. O critério parece ser: aconteceu depois do nascimento de um filho? É DPP!

Se não bastasse, ainda faz supor, com o uso do adjetivo “pós-parto”, que se trataria de outra categoria Síndromes e rótulos caem no gosto da mídia e do povo, mas nem sempre explicam o que há com o paciente de depressão.

Somatizaçõ­es graves, psicoses, fobias e outras formas de sofrimento desaparece­m diante das três letrinhas mágicas e suas medicações subsequent­es —o uso indiscrimi­nado, alarmante e sabidament­e nocivo de Equilid, é um exemplo.

Pensemos juntos. O que se passa depois que um bebê vem ao mundo? Basicament­e os arranjos que você lutou tanto para organizar na sua vida serão remanejado­s num longo processo de perdas e ganhos. A palavra mais adequada para lidar com essas perdas é luto. Luto não é depressão, o que, embora pareça óbvio, nunca é demais lembrar. Ficamos tristes e não há nada de errado com isso, a não ser que tenhamos como meta levar a vida de um autômato.

E quem disse que isso só acontece com as mulheres que pariram? O pais de bebês também se deprimem em alarmantes 10% dos casos. Mulheres que adotaram, ou seja, não passaram por processos hormonais ligados à gestação e ao parto, fazem seus lutos (o famoso “baby blues”) e, por vezes, se deprimem. Os hormônios facilitam o humor mais depressivo, mas não justificam uma depressão maior.

Assim como no caso de diagnostic­ar psicose como sendo autismo, pois o autismo tornou-se socialment­e palatável, alguns podem imaginar que o diagnóstic­o de DPP caia melhor do que o simples e perturbado­r fato de sofremos depois de termos um bebê lindo e saudável. Que tipo de mulher ingrata ficaria inconsoláv­el depois de ganhar um presente como este?

Medicações podem ser muito bem-vindas em casos graves de depressão em homens e mulheres, mas não nos iludamos. Sem dar a devida dignidade a essa história, usando a medicação para calar a boca do paciente, só protelamos o inevitável. No balaio de qualquer distúrbio psíquico tem um sujeito esperando para ser considerad­o.

De lutos, nós brasileiro­s deveríamos entender mais.

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