Folha de S.Paulo

Tirando onda da depressão

Para jornalista que vive com depressão há 14 anos, rir da doença foi o caminho para sobreviver, banalizar o tema e reduzir o estigma

- MARCELO ZORZANELLI

COLABORAÇíO PARA A FOLHA

Aos 21 anos, tive o dia mais feliz da minha vida até ali: fui diagnostic­ado com depressão clínica. Não é uma tentativa de fazer graça, apesar do título. Qualquer um dos 11,5 milhões de brasileiro­s (segundo a ONU) que sofremos de depressão pode garantir que este é um dia de alívio.

Saber o que está acontecend­o é o primeiro vaga-lume dentro do túnel escuro e frio. Você nasce, fica criança, dá umas gargalhada­s, encanta os parentes, faz amiguinhos na escola... Até que um dia não sai para brincar na rua, fica em casa perguntand­o se seu bonequinho está triste porque a mãe dele não está por perto e começa a chorar porque ele não responde. E por aí vai.

Um dia, mais tarde, sua alma está oca e nem as lembranças ternas da infância dobram o canto da sua boca para cima. Ela se instalou.

Sobre o primeiro episódio de esperança no túnel, eu preferi vaga-lume à proverbial “luz no fim” não por alguma tentativa de ser poético, Deus me livre; é que a primeira luz só vai aparecer, pálida, lá pelo ponto em que os primeiros tratamento­s, sejam eles remédios ou terapia, comecem a fazer efeito. Mas o tempo passa e o céu se abre.

Uma coisa cômica na depressão quando se é veterano (estou nessa há 14 anos) é o dia em que você percebe que não adianta andar em direção ao fim do túnel. Todo dia constroem mais túnel no fim do túnel, então o único jeito é continuar andando.

Por isso acho que é mais jogo rir da depressão, mesmo durante a crise (isso exige prática e uma saudável falta de pudor em parecer louco).

Gosto de uma equação do professor de meditação americano Shinzen Young que diz: sofrimento é igual à dor multiplica­da pela resistênci­a. Resistir no sentido de fazer oposição à existência do sofrimento. Em português: aceita que dói menos. Porque, quando os dias ruins aparecem com duas malas sem avisar, você tem menos chances de se degenerar numa crise existencia­l quando não tenta discutir com os pensamento­s ruins. Quando não os leva a sério.

Outra coisa engraçada da depressão é que, uma vez fora da crise, é divertido lembrar de quando até mexer as pernas começava a ser um incômodo. Não estou falando de andar, me refiro a quando você está preso à cama e o atrito das pernas contra o lençol ins- pira uma surpreende­nte vontade de chorar. Aconteceu comigo algumas vezes. Seja sincero: isso é hilariante.

E damos graças ao diagnóstic­o porque ele pode ser nossa desculpa para ser esquisito sem culpa. Ele é uma espécie de distintivo que você pode começar a usar dentro de casa sem ser incomodado. Se sua tia vier perguntar por que você não toma banho há três dias e está comendo sorvete direto do pote no sofá de cabeça para baixo, é só dar uma carteirada: “Você sabe com quem está falando? Eu tenho depressão clínica! Olha na Wikipedia. E pega pra mim um Cheetos daquele que fede e suja o sofá todo”. (Nos Estados Unidos é melhor ainda. Lá o nome da doença é general depression e você já começa com uma patente militar altíssima).

O pior diabo é aquele que você não conhece, diz uma máxima que devo estar citando errado. Flutuar no caldeirão de neuroses de um episódio depressivo pela primeira vez é uma das piores sensações que eu já tive. Você pesquisa a internet e em pouco tempo contraiu (na imaginação) câncer no cérebro, esquizofre­nia, síndrome do pânico, doença de Chagas, infarto no miocárdio e medo de avião. Pede ajuda aos pais e ouve que a filha da vizinha da sua tia perdeu a mãe aos dois anos, foi atropelada, esfaqueada e atropelada novamente, o cabeleirei­ro destruiu seu cabelo com uma chapinha de formol e ainda assim ela tem três empregos e cursa duas faculdades.

Depois do diagnóstic­o e dos primeiros passos, depois de ter de se tornar um ser humano um pouquinho melhor (inclusive se levando menos a sério) para sobreviver, você consegue até rir dos desavisado­s que dizem coisas como “mas ontem você parecia tão bem” e “você também precisa se esforçar!”.

Meu amigo, você não sabe o esforço que eu já tive que fazer para não enfiar uma chave de fenda no meu tímpano quando você fez a cara de quem ia falar essa frase.

Acredito que nós, brasileiro­s, atingimos há muito tempo a autossufic­iência em ignorância sobre os transtorno­s mentais. A depressão é a cabeça de chave, mas pouco se fala sobre a ansiedade, o estresse pós-traumático (num país mais violento que zonas de guerra), síndrome do pânico, fobias etc. Fazer piada banaliza e ajuda a diminuir o estigma.

Os antidepres­sivos, usados em praticamen­te todos esses transtorno­s, são os segundos na fila de remédios mais vendidos no Brasil, só atrás dos analgésico­s. E as pessoas ainda cochicham a respeito. A depressão é uma doença que, se não tratada, tem muitas chances de terminar em suicídio. No Brasil, são 30, em média, por dia. Mais que as vítimas de Aids e da maioria dos casos de câncer.

Acredito que o tabu deve ser atacado com pressa e até hoje não conheci nada melhor que uma piada para desmoraliz­ar algo. Numa sociedade evoluída, o humor fala sobre as coisas que as pessoas pensam mas não dizem, por preconceit­o ou pressão social.

Vamos, portanto, rir da desgraça. Desde que você, claro, já tenha buscado um psiquiatra, uma terapia e esteja em tratamento. Quando a coisa não estiver nem um pouco divertida (você sabe do que eu estou falando), tente encontrar alguém com senso de humor no Centro de Valorizaçã­o da Vida em todas as redes sociais e no telefone 188. Fale, não importa com quem seja.

Num caso extremo, vá a uma emergência hospitalar. Queremos você contando como chegou lá de moletom sujo de molho de tomate, um tênis de cada cor e fingiu estar tendo um ataque cardíaco para não ter que conversar com alguém na fila. MARCELO ZORZANELLI

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