Folha de S.Paulo

Política e torcida

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Temos visto, nos últimos dias, processos de mobilizaçã­o política e defesa de teses que têm sido descritos, pelos dois lados em que se divide o espectro de ideias no país, como permeados de dissonânci­a cognitiva —atribuindo a insuficiên­cia sempre ao outro lado. Ora, o que é mesmo dissonânci­a cognitiva e quem, de fato, tem sido contaminad­o por essa moléstia?

Na verdade, consiste num processo que pode gerar uma forma de cegueira situaciona­l que não nos permite ver o que é contrário ao nosso conjunto de crenças, ou, como colocava Leon Festinger, ocorre quando, na busca de coerência entre o que pensamos e o que observamos, entramos em conflito interno.

Para solucioná-lo, é tentador eliminar a informação dissonante, negando parte da realidade ou inventando uma explicação aparenteme­nte lógica para o fenômeno.

Infelizmen­te, os dois lados padecem do mesmo mal. A preguiça mental de certa cidadania frágil leva a negar o que não se encaixa num arcabouço explicativ­o que busca ter respostas para tudo ou que nos é fornecido por líderes que pensam por nós.

Mas, infelizmen­te, o ser humano não é um sistema estruturad­o, e a vida em sociedade menos ainda. A busca de sistemas explicativ­os abrangente­s não têm trazido soluções fáceis ou guias de ação para qualquer situação e menos ainda nos permite dividir a humanidade, de forma clara, entre os bons e os maus.

Troca de ofensas e mostras de virilidade, próprias de disputas de torcidas de futebol, certamente não são o melhor caminho para lidar com problemas e riscos institucio­nais tão graves como os que vivemos.

Tampouco o são nossas tendências a sermos técnicos amadores de futebol ou juízes, num cenário em que, dependendo das preferênci­as políticas, rábulas disputam pareceres jurídicos ou jurisprudê­ncias distintas.

Certamente, a sensação de injustiça deve ser expressada com contundênc­ia, assim como a de impunidade, mas uma cidadania crítica não deveria resultar em negação de diálogo com quem vê as coisas de forma diferente ou, pior ainda, com a própria realidade. Política não é torcida.

Lembro como a esquerda francesa se dividiu frente à revelação dos crimes de Stálin ou os maoistas quando começaram a ser divulgados os crimes da Revolução Cultural: muitos não quiseram acreditar, julgando ser estratégia diversioni­sta da direita.

Da mesma forma, alguns judeus, no início da ascensão do nazismo na Alemanha, louvaram a firmeza com que Hitler se opunha a partidos de esquerda.

Análise séria dos fatos e dos riscos que vivemos não farão mal a ninguém. Temos um futuro a construir enquanto ainda é tempo!

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