Folha de S.Paulo

Obra de Levrero enreda leitor na aventura da intimidade

- ÁLVARO COSTA E SILVA

FOLHA

Ao receber a bolsa que lhe permitiria terminar um projeto adiado por 16 anos, o escritor não teve dúvida: comprou duas poltronas e as dispôs no centro da sala.

Uma delas molenga: “Nas duas vezes em que sentei nela, peguei no sono”. A outra, ideal para ler, nem foi usada: “Só me sentei para experiment­á-la [...]. Mas logo chegará a sua hora, como chegou a hora deste diário”.

O objetivo da compra não era ler nem descansar. Paradoxalm­ente, era escrever. É a maldição do narrador.

Sua decrepitud­e, sua hipocondri­a, seus fracassos, suas mulheres, seus vícios, as ruas e os botecos de Montevidéu, o tango e a ioga, fazer ou não a barba, tudo se resume à tentativa de escrever.

É preciso transcende­r a “angústia difusa” para chegar ao “ócio razoável”. Só então o autor estará pronto para “O Romance Luminoso” (“La Novela Luminosa”, no original, soa bem melhor, um título feminino e aberto que ficou masculino e fechado).

Para não abandonar o hábito que o mantém vivo, o autor vai compondo seu “Diário da Bolsa”, que ocupa a maior parte do livro.

Escreve-se um diário para dar testemunho de uma época, confessar, experiment­ar, ensaiar esquemas, reflexões, teses críticas e filosófica­s, fofocar, conviver com demônios e fantasmas. Pode até parecer ficção (o relato ficcional muitas vezes usa o formato), mas nem sempre é.

Nas mãos de Mario Levrero, o resultado alinha-se à tradição do diário de escritores (Kafka, Musil, Pavese, Cheever, Barthes, Woolf, Piglia). Todas as facetas do gênero estão nesta obra póstuma (também se escreve um diário para que seja publicado só após a morte do autor).

Porém, como o título indica, trata-se de uma ficção. Ou, ao menos, força-se a ler como ficção. Ao contrário do que acontece com livros de diários, não se consegue pular entradas. Levrero exige atenção total, e o leitor, preso na aventura da intimidade, não quer outra coisa.

A obra leva ao paroxismo a investigaç­ão de si que o autor sempre praticou, mesmo ao flertar parodicame­nte com a ficção científica ou em incursões pelo fantástico.

Já havia abordado a questão em “El Diario de un Canalla” (1991) e “El Discurso Vacío” (1996), que poderiam integrar a projeto luminoso. Em última análise, trata-se de autoajuda para escritores. Mas só para os mais ambiciosos.

Costuma-se aquilatar a importânci­a do livro para a literatura latino-americana comparando-o a “2666”, de Roberto Bolaño. O mercado editorial adora essas comparaçõe­s. Esta se explica porque ambos golpeiam com a urgência e o desespero de quem sabe que, em breve, não será mais possível escrever. AUTOR Mario Levrero TRADUÇÃO Antônio Xerxenesky EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 84,90 (648 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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