Folha de S.Paulo

Quem controla a toga?

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Em 1931, o governo revolucion­ário determinou a aposentado­ria compulsóri­a de seis juízes do STF e a redução de 30% nos vencimento­s dos magistrado­s da corte. Era uma retaliação aos juízes que haviam negado habeas corpus aos tenentes revoltosos de 1922 e 1924, que agora estavam no poder.

“É a morte do Poder Judiciário no Brasil”, bradou Hermenegil­do de Moraes, veterano da corte. E lamentou que seu tribunal fora “desprestig­iado, vilipendia­do, humilhado”. Não renunciava ao cargo depois de 43 anos na magistratu­ra “para que não se diga que desertei do posto por terem sido diminuídos os vencimento­s do STF”.

Não é à toa que as Constituiç­ões liberais estipulam prerrogati­vas para os magistrado­s: irredutibi­lidade de vencimento­s, inamovibil­idade, foro por prerrogati­va de função, estabilida­de no cargo. Ao mesmo tempo em que estabelece­m que devem ser indicados por agente eleito —o presidente— para que a autonomia judicial não se converta em soberania.

As prerrogati­vas visam a proteção contra a interferên­cia dos outros poderes, sobretudo do Executivo. E que assumem historicam­ente a forma de violação das regras da competição política e de direitos.

Quanto mais abusos, maiores os incentivos para a criação de garantias constituci­onais. No entanto, elas próprias podem dar margem a desvios, como bem sabemos.

A história registra correções de rumo quando eles ocorrem. Após a criação do Imposto de Renda no Brasil, em 1922, o STF protestou que a Constituiç­ão vedava a redução no valor dos vencimento­s e que o IR, na prática, teria esse efeito.

A resistênci­a não surtiu efeito: a emenda constituci­onal de 1926 deixou claro que o imposto alcançava a todos —na Argentina, os juízes venceram a briga. A inflação e expediente­s que permitem escapar ao imposto (ex. auxílio-moradia) alteraram o equilíbrio.

A Constituiç­ão proíbe reduzir, mas não aumentar vencimento­s. Magistrado­s querem se arrogar o poder de se dar aumento, e os políticos almejam controlar e usar esse poder.

É preciso distinguir o ataque a privilégio­s no Judiciário de ataques à autonomia judicial. Retaliar juízes e atacar instituiçõ­es é objetivo histórico de autocratas. Atacar privilégio­s é dever republican­o.

A estratégia em 1931 era “deixar suspensa a espada sobre a cabeça dos que forem poupados”, como disse Hermenegil­do, autor de “Memórias do Juiz Mais Antigo do Brasil” (1942). Hoje, a espada assume outras formas: interferên­cia em privilégio­s mirando sub-repticiame­nte a autonomia.

O cenário desejável é aquele em que —por efeito não antecipado— as críticas levarem à redução de privilégio­s. O indesejáve­l é se elas enfraquece­rem o Judiciário quando ele finalmente passa a combater a impunidade.

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