Folha de S.Paulo

A pedra sob a linha da água

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RIO DE JANEIRO - Há tempos, circulou pela internet uma aparente fotografia do Pão de Açúcar de um ângulo inusitado —a pedra à flor da água estendia-se sob o mar numa formidável formação rochosa, dez vezes maior do que a que vemos na superfície. Como hoje as câmeras são capazes de fotografar tudo, parecia uma foto real. Mas, observando melhor, via-se que era um desenho, uma simulação, e não muita acurada —a base submersa do Pão de Açúcar não poderia ser tão grande, principalm­ente em águas de baía.

Mesmo assim, a cena me intrigou. O que haverá por baixo do Pão de Açúcar que admiramos todos os dias? Os mergulhado­res devem saber melhor, mas imagino que, em milênios de ação geológica, a pedra sob a linha da água contenha fendas, reentrânci­as, altos e baixos relevos, grutas, e sabe-se lá o que se esconde nelas —talvez um passado cheio de histórias.

A baía de Guanabara foi cenário de várias invasões —duas delas, em 1710 e 1711, pelos franceses, a última envolvendo bombardeio­s— e isso pode ter produzido despojos que se alojaram ali. Não será surpresa se, nas profundas das vizinhança­s, houver até navios afundados, com peixes entrando e saindo pelos olhos dos crânios de corsários.

Tudo isso para dizer que, sob o cartão-postal incorporad­o à nossa paisagem e sobre o qual pensamos saber tudo, pode haver toda uma vida que independe de nós e, para sorte do cartão-postal, do nosso conhecimen­to a seu respeito.

O Rio é das poucas metrópoles do mundo cujas imagens, não importa se dos séculos 16, 19 ou 21, não deixam dúvida sobre de onde se trata. Ao vê-las, sabemos que é o Rio, e um dos motivos é o Pão de Açúcar, eterno sentinela da baía. Mas, por algum motivo, ele tem perdido terreno em termos de simbologia. A nova marca do Rio, e não é de hoje, passou a ser o Cristo do Corcovado. MARCUS MELO

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