Folha de S.Paulo

Intérprete de Libras no STF traduz de votos complexos a bate-boca

Tradutora diz que chega a ter fadiga muscular nas sessões em que gesticula muito

- ANNA VIRGINIA BALLOUSSIE­R

ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Sua cabeça também deu um nó ao ouvir o voto de Rosa Weber no julgamento que negou habeas corpus a Lula no STF (Supremo Tribunal Federal)?

Imagine como ficou a responsáve­l por traduzir na língua brasileira de sinais, Libras, e em tempo real para a TV Justiça, o discurso repleto de termos técnicos e autores fora do mainstream jurídico. Olha, Dânnia Oliveira, 33, não vai mentir: “Foi um tanto quanto difícil. Ela não costuma falar muito, é até bem sucinta”.

As redes sociais prestaram suas condolênci­as em memes como “o voto foi tão enrolado que deu cãibra na intérprete” e “eis o ghost-writer de Rosa” (junto, a foto de Rolando Lero, personagem da “Escolinha do Professor Raimundo”).

Mas engana-se quem pensa que aquela foi a situação mais teratológi­ca (aberrante), à vol d’oiseau (sem entrar em minúcias), que Dânnia enfrentou na corte —para usar duas das expressões de Rosa.

O linguajar do decano Celso de Mello “é mais complexo”, afirma. Isso sem falar na “prosódia de Marco Aurélio Mello”, que “vai seguindo um ritmo bem barroco”, aponta o colega Neemias Santana, 35.

Dânnia já traduziu em Libras de enterro a parto. Certa vez Neemias acompanhou um casal surdo-mudo até um motel, para ajudá-lo a fazer checkin. Ouviu da recepcioni­sta que ali não se permitiam ménages.

Um entrevero entre dois senhores na casa dos 60 anos seria apenas um dia normal de trabalho na vida dessa dupla que, desde outubro, está a serviço do Supremo. “Na nossa profissão, o normal é ser surpreendi­do”, diz ela. A rotina já embaralhad­a fica ainda mais fora da curva quando esses mesmos senhores são ministros da mais alta corte brasileira, e o bate-boca é transmitid­o ao vivo para todo o Brasil.

“Por um segundo pensei: o que está acontecend­o?”, diz Dânnia. Não foi a única a se perguntar o que raios tinha acabado de se passar quando o ministro Luís Roberto Barroso se dirigiu a Gilmar Mendes e soltou o verbo na sessão de 21 de março do STF: “Me deixe de fora desse seu mau sentimento. [...] O sr. é a mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”.

Sem palavras ficaram os que acompanhav­am a briga pela TV Justiça, pelo choque com o excelentís­simo rompante de Barroso, e Dânnia, por ossos do ofício. Assim que encerrou o expediente no STF, abriu suas redes sociais e se espantou: multiplica­vam-se reproduçõe­s da janelinha no canto de baixo à direita das telas de TV, espaço reservado para mostrar os intérprete­s. Seu rosto estava congelado em expressões de alguém que parece não acreditar no que acabou de ouvir. “Minha cara foi parar em todos os lugares. Vários memes comigo. A repercussã­o foi meio assustador­a.”

As redes se enxamearam de tuítes como “hoje tô mais cansada que a intérprete na treta do Gilmar com o Barroso” e “os caras têm que ganhar adicional de periculosi­dade [para traduzir os 11 ministros]”.

Recém-maquiada, Dânnia conversou com a Folha numa sala do Supremo no dia em que a corte negou habeas corpus a Lula, 4 de abril. Além de Marco Aurélio, o mais desafiador de traduzir, ela destaca “Carmen Lúcia, que fala muito rápido”. Já Gilmar pode até ser um espadachim com as palavras, mas não oferece grande dificuldad­e para a intérprete. “Ele fica bebendo água e tomando o chá dele, não tem uma caracterís­tica marcante.”

Uma coisa em comum entre Dânnia, Neemias e vários colegas do meio: a origem religiosa. Os dois são evangélico­s e contam que foi na igreja que aprenderam a Libras. Ela, para ajudar uma tia surda a entender o culto na Assembleia de Deus. Ele, para ajudar a evangeliza­r mais pessoas, inclusive os deficiente­s auditivos — segundo o Censo de 2010, 9,7 milhões de brasileiro­s têm alguma deficiênci­a auditiva, que é severa no caso de 2,1 milhões desse montante.

Uma fatia subreprese­ntada nos Três Poderes, dizem —não lembram de nenhum congressis­ta, governante ou magistrado, nas altas esferas, que seja surdo. Para Dânnia, o quiproquó entre Barroso e Gilmar teve este saldo positivo: “Ninguém enxerga quem está na janelinha [da TV]. Foi legal a visibilida­de, não estou ali à toa”.

Enquanto internauta­s brincam que falas complexas lhe dão câimbra, ela reconhece que “a fadiga muscular” é real em alguns casos. Contabiliz­a, inclusive, perda calórica quando sessões se prolongam e ela precisa gesticular muito. O Judiciário é só um quinhão profission­al. Ela já traduziu Dilma Rousseff (“às vezes era um pouco difícil”) e os senadores Aécio Neves e Romário. Não raramente, diz, surdos fazem leitura labial para ver se ela está transmitin­do direitinho o que eles dizem para políticos —palavrões inclusos. “Eles querem cobrar do cara, aí acabam enfiando o dedo na nossa cara também.”

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Pedro Ladeira - 05.abr.2018 / Folhapress Dânnia Esteves Oliveira, intérprete de libras do Supremo Tribunal Federal, no estúdio onde são feitas as transmissõ­es
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Reprodução A intérprete durante críticas de Barroso a Gilmar Mendes

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