Folha de S.Paulo

Vivo em outro lugar, fora do meu lar; queria que alguém me dissesse por quê

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Meus pais tinham uma casa grande na parte ocidental de Jerusalém, onde naquela época vivia a maior parte dos palestinos cristãos. Um casal de judeus –refugiados do Holocausto– alugava a nossa garagem. Eu brincava com a filha deles, Ruti, que tinha a minha idade.

Com a guerra de 1948, minha família teve de deixar a casa e fugir da cidade. Eles puderam ficar na casa e continuam morando ali até hoje: transforma­ram a garagem em um chalé.

A Ruti ainda mora lá, mas eu vivo em outro lugar, fora do meu lar. Queria que alguém me explicasse por quê.

É muito doloroso voltar a meu bairro, Talbiyeh, e ver de fora a casa onde eu cresci. Dói até hoje, nesta idade! Às vezes a Ruti me diz: “volte um dia para tomar um café comigo”. Eu fui algumas vezes...

Saímos daquela casa em 1947 depois que uma milícia judaica clandestin­a colocou uma bomba no nosso jardim. O alvo era o quartel-general dos britânicos na esquina. Eles controlava­m a Palestina.

Eu estava sozinha em casa, uma criança deitada na cama, e os estilhaços das janelas caíram em cima de mim. Meus pais decidiram fugir comigo para uma casa que nós tínhamos em Jericó.

Eu não entendia como o meu pai, um homem tão forte, não podia voltar nem para buscar minhas bonecas. Eu era criança, mas entendia que alguma coisa estava errada. Meu pai era um homem rico e, de repente, não tínhamos mais o conforto do lar.

Voltamos a Jerusalém em 1948 e vivemos em um campo de refugiados. No ano seguinte, nos mudamos para Amã, na Jordânia, e depois para Beirute. Casei em 1961 e voltei a Jerusalém. Fui morar do outro lado da cidade, a parte oriental.

Meus pais continuara­m na Jordânia e, nos anos 1970, me visitaram em Jerusalém. Pediram que eu os levasse para a nossa antiga casa, e eu inventava desculpas para evitar. Meu pai insistiu e fomos.

Ele conversou com as pessoas que moram lá hoje e foi bastante civilizado com eles. Mas, à noite, teve febre alta e precisei chamar o médico. Meu pai me disse: “Essas eram feridas que estavam fechadas, e você as reabriu para mim”. Nunca me esqueci.

Recentemen­te Ruti me perguntou se eu ainda penso em voltar. Eu disse que sim. Ela respondeu: “Mas você sabe, Claudette, que as guerras mudam as coisas”. Eu devolvi: “Sim, mas não há reparações em uma guerra? Pois eu ainda não recebi nada pela minha casa”.

Não sou antissemit­a. É uma questão política, de terras e de propriedad­es que foram usurpadas de um povo. Sabe, as árvores que meu pai plantou ainda estão lá. Nós tínhamos as melhores uvas da cidade!

São coisas que bloqueei da minha memória e, agora que estou falando sobre isso com você, vejo tudo outra vez. Se eu não voltar para casa, meus filhos vão voltar. Ou meus netos, ou meus bisnetos.

A Nakba –a catástrofe, como nós chamamos os eventos de 1948– afetou todos os palestinos. Você não me vê chorando, hoje sou feliz, e essa é a minha força. Mas é a minha terra, eu quero viver e morrer ali. (DB)

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Ariel Jerozolims­ki/Folhapress A palestina Claudette Habash, cuja família perdeu a casa em Jerusalém

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