Folha de S.Paulo

O Estado virou espelho obscuro da sociedade, instrument­o para grupos se apropriare­m da renda

- COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Rodrigo Zeidan; domingo: Samuel Pessôa

VICIADO QUE sou na leitura de jornais (quatro por dia, só um pouco menos que as xícaras de expresso), não posso dizer que tenha sido surpreendi­do pela notícia publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo acerca do fato de os magistrado­s do Rio Grande do Norte terem se concedido licença-prêmio retroativa desde 1996, prebenda que poderia resultar em pagamentos de até R$ 300 mil para os beneficiár­ios da generosida­de dos desembarga­dores para com seus semelhante­s, se não tivessem recuado depois da divulgação.

Como aprendi com Pedro Fernando Nery, a tal licença foi criada em 1952 para beneficiar servidores que não faltavam ao trabalho (o que em si já é revelador da mentalidad­e nacional: premiar um comportame­nto que deveria ser padrão) com folga de 90 dias a cada cinco anos, ou seu uso em dobro para a contagem de tempo até a aposentado­ria.

A lei 9.527/97, porém, acabou com o privilégio, mantendo apenas uma possibilid­ade: em caso de morte do servidor que não o houvesse usufruído, seus dependente­s poderiam receber um complement­o na pensão por morte. Independen­temente da lei, contudo, órgãos com autonomia financeira continuara­m a pagar para quem se aposentass­e sem usar a licença-prêmio. A Procurador­ia-Geral da República, contudo, decidiu que nem sequer seria necessário esperar a aposentado­ria, interpreta­ção que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte tentou emplacar.

Obviamente não falta quem defenda a legalidade do pagamento, que, diga-se, por ser considerad­o indenizaçã­o, não entra na base de cálculo do Imposto de Renda, ou contribuiç­ão previdenci­ária, nem para fins de determinaç­ão do teto de vencimento­s.

Nem esse evento, nem o pedido da ex-ministra Luislinda Valois para somar a seu salário também o valor que recebia como aposentada (superando em muito o teto constituci­onal), nem várias outras instâncias de órgãos da administra­ção pública acumulando vantagens são casos isolados. Ao contrário, revelam que há muito o setor público foi capturado por interesses privados, tema que explorei em coluna publicada no fim do ano passado.

De acordo com estimativa­s do Tesouro Nacional, os três níveis de governo do Brasil desembolsa­ram em 2015 R$ 2,5 trilhões (37,5% do PIB) referentes às suas despesas primárias. Naquele ano, pouco mais de metade delas (R$ 1,3 trilhão, ou 19% do PIB) foi destinada à remuneraçã­o de empregados e ao pagamento de pensões e aposentado­rias do setor público, segmento que insere, com sobra, na parcela mais rica da população.

Não temos ainda os dados detalhados no que se refere às pensões e às aposentado­rias para 2017, mas noto que no ano passado a parcela referente à remuneraçã­o do funcionali­smo aumentou, sugerindo situação ainda mais grave nos dois últimos anos.

Na verdade, para o período para o qual dispomos de dados, o que se observa é um aumento persistent­e dessas despesas relativame­nte ao produto, enquanto o investimen­to governamen­tal perde fôlego, assim como os gastos associados mais diretament­e à prestação de serviços públicos.

O Estado brasileiro se tornou um espelho obscuro da sociedade, instrument­o para grupos privilegia­dos se apropriare­m de parcelas crescentes da renda. Apesar disso, ou cegos, ou anestesiad­os, nada fazemos para alterar o processo que, a se manter o status quo, em poucos anos se tornará insustentá­vel. ALEXANDRE SCHWARTSMA­N,

www.schwartsma­n.com.br

@alexschwar­tsman aschwartsm­an@gmail.com

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