Folha de S.Paulo

Levanta, papai!

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: A. Pellegrino e M. Miklos; JAIRO MARQUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

EU SABIA que aconteceri­a, que chegaria o momento de biscoita me dar uma enquadrada por estar sempre sentado na hora das danças, na hora de brincar de pique-esconde. Só não imaginava que seria de maneira tão precoce e tão contundent­e.

Minha filha, às vésperas de completar três anos, quer entender já o que é ser diferente, e eu, que me achava tão seguro e bem resolvido, voltei a pensar, como num passado remoto, que não seria de todo ruim que me surgisse um cálice do elixir da normalidad­e para voltar a andar “só um pouquinho”.

E foi mais ou menos assim: “Papai, levanta para rebolar comigo essa música!”, “Papai, sai da sua cadeirinha um pouco e senta aqui no tapete para brincar”, “Pai, por que sua perninha é assim?”, “Pai, fica em pé só um pouquinho, igual à mamãe”.

Elis tem mais do que uma curiosidad­e pontual de qualquer criança que vê um cadeirante na rua, no shopping, aponta o dedo e lasca: “O que é iiiiissso, mãe?!”.

Ela tem uma necessidad­e de compreende­r por que sua própria vida é brindada com um ineditismo de ser —afinal, ser família, é ser um só em diversos momentos. Ela quer saber por que não a jogo bem lá no alto, como ela adora, porque não a socorro rápido quando se afoga de tanto rir na piscina de bolinhas.

A legítima curiosidad­e de minha pequena tem sido pueril e cessa diante de uma resposta com pouco argumento tipo “filha, todos somos diferentes. O vovô usa bigode, a vovó usa óculos, o Joca tem os olhos esbugalhad­os, Biscoita resolveu, antes do que eu previa, me dar uma enquadrada por estar sempre sentado na hora de brincar o lobo faz malvadezas e o papai usa uma cadeirinha, sabe?”.

Pensava que esse processo de reconhecim­ento e descoberta de minha vida torta fosse construído de maneira mais natural para ela, embalada no berço, embrulhada nas fraldas e mimada desde sempre comigo na tal “cadeirinha do papai”, mas pitchuca me obriga a refletir que o “serumano” em suas complexida­des também é um valor a ser construído, lapidado, discutido, avaliado.

Certa vez, mergulhado numa angústia que não cabe em palavras e aproveitan­do que estávamos na varanda só eu, ela e a boneca da Luna, quis avançar no debate: “Você fica triste porque o papai só brinca de fada com você sentado?”. Ela pensa com a brevidade que as grandes expectativ­as almejam e tasca: “Não fico, não, papai. Agora veste aqui o tutu, porque é sua vez de fazer a magia”.

Naquele momento, bem que a varinha de plástico que ela ostenta com a certeza de fazer o impossível —já fez uma massinha verde ficar azul e aparecer um chocolate dentro de uma caixinha— poderia me fazer ficar em pé só um pouquinho para dar a ela o sagrado mimo de não entortar seus tenros sonhos e inspiraçõe­s.

Não há convicção que se mantenha diante uma criança que confia a você a orientação das verdades. Deficiênci­a não é pecado, não é carma, não é castigo, mas ler a cartilha de minhas firmezas de caráter, de minha resiliênci­a e, com a delicadeza do voo de libélula, explicar que mesmo aquelas com menos asas podem encantar e seguir adiante sendo libélulas, não é das tarefas mais fáceis.

Refleti um bocado se deveria compartilh­ar esse momento com os leitores. Concluí que, se as ideias destas linhas é tentar levar luz ao desconheci­mento a respeito das diversas maneiras de viver, é também válido demonstrar que há páginas brancas que só a experiênci­a, a inclusão plena e o abraço apertado na diversidad­e irão ajudar a preencher. jairo.marques@grupofolha.com.br

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