Folha de S.Paulo

Benzedeira­s sobrevivem na terra de Chica da Silva, em Minas Gerais

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COLABORAÇíO PARA A EM BELO HORIZONTE

É em uma casa cercada de plantas medicinais que vive Maria Mercita Cunha. Aos 86 anos, dona Mercita vai ao quintal e, diante de um pé de guiné, pede permissão à natureza para usar seus poderes de cura. Enquanto isso, um rapaz a espera na cozinha para ser benzido. Ela segura algumas folhas da planta e começa a rezar.

“Benzer é isso. É a gente fazer uma prece para ajudar uma pessoa, mas tem que ter o dom”, afirma. Terminado o rápido ritual, Mercita joga no próprio quintal as folhas da erva. “É a natureza que vai consumir com as folhas que eu usei e levar o problema da pessoa embora”, diz.

A ex-lavradora e benzedeira costuma ser requisitad­a por moradores e por turistas que a procuram em Milho Verde, distrito de Serro, a 315 km de Belo Horizonte.

O distrito fazia parte do antigo Arraial do Tijuco, atual Diamantina, reconhecid­a como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco.

Foi em Milho Verde que nasceu Chica da Silva, escrava alforriada que atingiu posição de destaque na sociedade e se tornou uma das personagen­s mais importante­s do período colonial brasileiro.

É em Milho Verde que, como Dona Mercita, vivem outras seis benzedeira­s, mulheres que insistem em preservar o ato de benzer. A prática, que é uma herança do catolicism­o popular português, mistura no Brasil influência­s indígenas e africanas e vem desaparece­ndo, muito em função dos avanços de outras práticas religiosas, dos avanços científico­s e do desinteres­se dos mais novos.

Para o artista plástico Paulo Jader de Meira, 56, o benzimento é infalível. “Sempre recorro a uma das benzedeira­s aqui da região. O que elas têm em comum é a vontade de fazer o bem. São todas pessoas de bem”, afirma.

Dalva Fernandes Siqueira é benzedeira desde os 20 anos. Hoje, aos 78, diz que as pessoas perderam a fé —por isso ainda não encontrou quem quisesse seguir o que aprendeu com sua mãe. “Antigament­e não tinha médico nada, só Deus. Só remédio do quintal, do mato. Hoje, o povo confia primeiro na ciência.”

Católica fervorosa, Dalva tem na porta de entrada de casa uma bandeira de Nossa Senhora do Rosário; na sala, um altar aonde estão várias imagens de Santos. Dalva faz questão de ressaltar que benze com brasas, água e com o poder do Espírito Santo. Com a força desses três elementos, qualquer coisa é curada.”

A dona de casa Geórgia Carvalho mora em São José da Lapa, na região metropolit­ana de Belo Horizonte, e aproveitou a ida a Milho Verde para benzer a filha, Ana Clara, 5.

“Ela foi benzida contra cobreiro com talos de plantas e eles foram colocados na fumaça do fogão à lenha para secar. Assim que os talos secarem, o cobreiro vai ser curado”, afirma Geórgia. OUTRAS RELIGIÕES A mudança de prática religiosa também tem feito com que os benzimento­s sejam esquecidos. É o que afirma a caçula das benzedeira­s, Aparecida do Rosário Ferreira Montmor, 53. “Muita gente aqui se tornou evangélica e deixou de benzer as pessoas por considerar a prática proibida pela Bíblia”, diz.

Mesmo sendo umbandista e mantendo um terreiro na cidade do Serro, ela segue firme, benzendo quem precisa.

“A umbanda não atrapalha os benzimento­s. Acredito que a tradição vai se reinventan­do, senão já tinha morrido há muito tempo”, diz.

É com sorriso e abraço forte que Maria das Mercês Santos, 81, filha e neta de benzedeira­s, recebe quem lhe procura para benzer. Mais conhecida como Maria Coração, devido à forma carinhosa como trata todos que a procuram, a benzedeira diz que hoje só atende crianças porque não tem mais forças para curar os problemas dos adultos.

“Tem que estar preparada, estar muito bem de saúde e ter muita fé, senão o benzimento fracassa e a gente vai até para a cama”, afirma.

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Gilson Ferreira/Divulgação Dalva Fernandes Siqueira, 78, benzedeira de Milho Verde, em MG, que pratica as bênçãos desde os 20, ensinada pela mãe

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