DONA DO SAMBA
Morre aos 96 anos a sambista carioca Ivone Lara, pioneira no jeito de cantar, compor, tocar instrumento e dançar um miudinho muito singular
ESPECIAL PARA A FOLHA
A exemplo de outros luminares, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus, Yvonne da Silva Lara, que morreu na noite desta segunda (16), aos 96 anos, ganhou reconhecimento de forma tardia. No caso dela, que lançou o primeiro disco aos 56, há dois motivos.
Primeiro, a dedicação espartana à profissão de formação. Ivone —que, aos 10 anos, para entrar no colégio interno que exigia idade mínima de 11, teve o registro adulterado pela mãe— graduou-se em enfermagem e especializou-se em assistência social.
Tornou-se braço direito de Nise da Silveira, cuidando por 37 anos de pacientes com transtornos mentais. Não à toa, sensibilidade e humanismo se revelariam no fazer artístico de Dona Ivone.
O segundo fator impeditivo para que ela se dedicasse exclusivamente à música era o machismo —fosse pelo ciúme do marido ou pelo simples fato de que não havia abertura para uma mulher mostrar suas músicas nos terreiros das agremiações de samba.
De maneira inteligente e discreta (ainda no Prazer da Serrinha; depois, no Império Serrano), ela começou a apresentar suas composições como se fossem de seus primos, Mestre Fuleiro e Tio Hélio.
De maneira pioneira, seu nome começou a despontar num ambiente masculinizado. Em 1965, com “Os Cinco Bailes da História do Rio”, em parceria com Silas de Oliveira e Antonio Bacalhau, uma revolução: tornou-se a primeira mulher a entrar para a ala de compositores e a ganhar o concurso que escolhia com qual samba-enredo a escola iria desfilar na avenida.
(Isso, diga-se, em uma agremiação do Grupo Especial. Antes de Dona Ivone, como apontam os pesquisadores Luiz Antonio Simas e Alberto Mussa, a primazia coube a Carmelita Brasil, ainda nos anos 1950, pela Unidos da Ponte.)
Em um país ainda hoje com alto índice de mortes de mulheres e de negras, Ivone revolucionou sem alarde, com elegância, pela arte. Serviu de guia e farol para nomes como Leci Brandão, Gisa Nogueira, Beth Carvalho, Alcione, Jovelina Pérola Negra, Áurea Martins, Teresa Cristina, Nilze Carvalho e tantas outras.
Ivone nunca foi campeã de vendas, mas suas composições se esparramaram (e ainda ecoam) por todo o país. Para muito além do samba, foi abraçada pela chamada MPB e teve obras gravadas por Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Marisa Monte, Elza Soares, Elizeth Cardoso, Nara Leão e Luiz Melodia.
No meio do samba, suas criações individuais —como o clássico “Alguém me Avisou”— ou em parcerias com gigantes como Delcio Carvalho, Jorge Aragão, Nei Lopes, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Sargento, Arlindo Cruz e Caetano Veloso ganharam as vozes de Paulinho da Viola, Roberto Ribeiro, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Cristina Buarque e Clementina.
De Hermínio, ela ganhou o preciso e precioso título de “primeira-dama do samba”.
Os porquês são cristalinos. Foi a primeira a cantar do jeito que cantava (abrindo vozes), a compor da maneira que compunha (com influências do jongo, do choro, dos sambas de terreiro e de enredo, do canto orfeônico), a tocar um instrumento (o cavaquinho), a dançar aquele miudinho tão singular e a confeccionar os figurinos com que se apresentava.
Seus famosos “lara raiás” e suas melodias, que combinam lirismo, sofisticação, sinuosidade
Vida de Dona Ivone Lara
e apelo popular, têm assinatura inconfundível. O que dizer de “Sonho Meu”, “Acreditar”, “Tiê”, “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, “Tendência”, “Enredo do Meu Samba”, “Alvorecer” e “Nasci pra Sonhar e Cantar”?
Em tempos nebulosos, a passagem de uma das maiores compositoras do país em todos os tempos deixa um recado importante.
Enquanto houver a lembrança de um Brasil mais musical, haverá Dona Ivone e a esperança de um cotidiano mais amoroso, marcado por mais igualdade de vozes, mais generosidade, mais afeto. LUCAS NOBILE
DO RIO DE SÃO PAULO
O velório de Dona Ivone Lara, nesta terça-feira (17), teve samba e cerveja.
O corpo foi velado ao longo da tarde na quadra do Império Serrano, escola do coração da sambista, em Madureira, na zona norte do Rio. O local esteve cheio durante toda a cerimônia.
Integrantes da escola fizeram uma roda de samba ao lado do caixão. Em coro, a quadra cantou sucessos da artista, como “Sonho Meu” (“Sonho meu, sonho meu / Vai buscar quem mora longe, sonho meu”), “Acreditar” (“Acreditar, eu não / Recomeçar, jamais / A vida foi em frente / você simplesmente não viu que ficou / Pra trás”) e “Alguém Me Avisou” (“Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”).
A música estava no sangue da carioca, filha de Emerentina da Silva, que cantava em ranchos nos quais o marido, João Lara, tocava violão de sete cordas.
Alcione foi ao local prestar homenagem. “Vim agradecer a Dona Ivone por ter existido”, disse ela. A cantora comentou também o pioneirismo de Ivone Lara como mulher compositora: “Ela já nasceu empoderada”.
“Estou aqui como amigo e admirador. Eu às vezes ia na casa dela cantar um pouco. É uma pessoa que sempre foi uma ídola minha”, disse o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (DEM).
Sobre o caixão foram estendidas bandeiras do Império Serrano e do clube de futebol América, pelo qual Dona Ivone torcia.
O clima de celebração de sua vida e suas canções continuou no enterro, no qual parentes e amigos cantaram em coro seus sucessos.
O corpo da sambista foi sepultado numa gaveta na parede no cemitério de Inhaúma, na zona norte.
“O artista não morre, ele muda de lugar, a música está aí, continua viva na nossa memória e emoções”, disse em vídeo Zeca Pagodinho. Para Maria Bethânia, o samba sentirá bastante sua falta.
Segundo o neto André, ela deixou cerca de 40 composições inéditas, algumas em parceria com ele próprio.
Dona Ivone havia sido internada duas semanas atrás com insuficiência respiratória, dizem familiares. A causa oficial da morte não fora divulgada até a conclusão desta edição. A artista deixa um filho, Alfredo, dois netos e três bisnetos.