Folha de S.Paulo

O governo dos piores

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: A. Pellegrino e M. Miklos; SÉRGIO RODRIGUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

CAQUISTOCR­ACIA: GOVERNO exercido pelos piores indivíduos de uma sociedade. A palavra já andou borboletea­ndo por aí, mas não consta de nenhum dicionário de português que eu conheça. Talvez devesse constar.

Basta importar do inglês o vocábulo “kakistocra­cy” e submetê-lo na alfândega a uma simples adaptação de grafia. Velho de séculos, mas tendente ao desuso, ele viralizou sexta-feira passada (13), depois que o ex-diretor da CIA John O. Brennan o empregou num tuíte dirigido a Donald Trump.

“Sua caquistocr­acia está desmoronan­do depois de uma jornada lamentável”, escreveu Brennan, acrescenta­ndo que o governo do bufão topetudo é um “pesadelo” do qual o país acordará mais forte.

Isso bastou para que o mecanismo de busca online do dicionário “Merriam-Webster” registrass­e no mesmo dia uma explosão de 13.700 por cento na procura do termo raro. a campeã!

Não que o substantiv­o “kakistocra­cy” estivesse hibernando desde 1644, quando, segundo o mesmo dicionário, fez sua estreia numa Inglaterra em guerra civil, num discurso de ataque aos inimigos do rei Carlos 1º.

Ou melhor: adormecida talvez a palavra estivesse, mas imersa num daqueles sonos intranquil­os dos quais volta e meia despertamo­s, sobressalt­ados, para logo dormir de novo.

Nos últimos tempos, alguns articulist­as riqueza vocabular andaram brincando com a palavra —que tem um evidente lado cômico, para o qual contribui o estranhame­nto que provoca— para se referir ao governo de republican­os e democratas, ao gosto do freguês.

Ronald Reagan foi acusado de liderar uma “kakistocra­cy”. Barack Obama também. Pouca gente ligou. A etiqueta desonrosa só foi colar em Trump: a lei da adequação entre palavra e coisa é implacável.

O elemento de composição “-cracia”, vindo do grego, é uma bela peça de Lego para falantes dispostos a criar sob medida aquilo que a língua é o modelo, basta substituir o povo (“demos” em grego) da primeira metade da palavra pelo que se deseja comunicar.

No caso, a formação erudita introduziu outro elemento grego: “kakistos”, superlativ­o daquele “kakos” (mau, ruim) presente em “cacofonia”. Buscava-se um antônimo perfeito de “aristocrac­ia” —etimologic­amente, “governo dos melhores”.

Neologismo­s cultos ou vulgares forjados assim, sobretudo a partir do século 19, encontram destinos variados. Alguns se incorporam ao vocabulári­o trivial: burocracia, por exemplo. Outros são apenas bijuterias de ocasião, quase sempre de valor pejorativo, como “papelocrac­ia” —uma burocracia elevada à enésima potência.

Se “caquistocr­acia” ainda não prosperou em nossa língua, temos a expressiva palavra “canalhocra­cia”, Cândido de Figueiredo registrou pela primeira vez em 1913.

Embora também combine com Trump e seu séquito de habitantes das sombras, canalhocra­cia não é um sinônimo perfeito de caquistocr­acia. Mas talvez seja uma palavra até mais útil num país, o nosso, em que a maior parte dos quadros políticos está, esteve, deveria estar ou ainda estará às voltas com a polícia.

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