Folha de S.Paulo

Autoria forte mostra descompass­o em adaptação de obra tida com infilmável

- SÉRGIO ALPENDRE

FOLHA

É estranho, mas diretores do cinema novo (Ruy Guerra, Walter Lima Jr., Carlos Diegues) mostram maior dificuldad­e de se manter em forma do que diretores do chamado cinema marginal (Andrea Tonacci, Júlio Bressane, Luiz Rosemberg Filho).

Enquanto os segundos fizeram alguns dos filmes mais fortes dos últimos anos —“Já Visto Jamais Visto”, “Cleópatra”, “Guerra do Paraguay”— os primeiros realizaram filmes irregulare­s como “Veneno da Madrugada”, “Através da Sombra” e “OMaiorAmor­doMundo”.

Ruy Guerra é um dos diretores mais importante­s da história do cinema brasileiro, de obras-primas como “Os Fuzis” e A Queda”. Tem noção inegável de dramaturgi­a e composição de imagem.

Mas seus últimos filmes não fazem jus ao talento (talvez pela dificuldad­e de filmar no país, mesmo para quem, comoele,jánosdeuta­nto).

“Quase Memória” (2015), baseado em um livro tido como infilmável de Carlos Heitor Cony (1926-2018), surge após um hiato de dez anos. Estreou no Festival do Rio de 2015, e entra no circuito comercial somente agora.

Na trama, Carlos Campos (Tony Ramos) encontra sua versão jovem (Charles Fricks), numa espécie de acerto de contas com o passado e com as lembranças do pai (João Miguel).

Falou-se muito da aparição do Carlos mais jovem para o mais velho, que remete a Ingmar Bergman (vide “Morangos Silvestres”) e a um certo cinema italiano dos anos 1960 e 70. A ideia é boa, embora não seja original. E talvez não tenha sido executada da melhor maneira.

A escuridão dá o tom desde o início, com belas imagens no pântano (nas quais um sapo parece falar), convidando-nos a adentrar o tenebroso terreno mental do duplicado protagonis­ta. Contudo, a câmera indecisa não favorece o claro-escuro que domina a encenação.

Um bom exemplo disso está nos momentos em que vemos o lar de Carlos, com aquela imensa janela que filtra a luz externa e deixa o ambiente semelhante ao de um filme de Alexander Sokurov (“Pai e Filho”, apropriada­mente, vem logo à mente). O rigor da composição da luz briga com a falta de rigor nos enquadrame­ntos.

Apesar do claro-escuro reforçar os subterrâne­os da memória e a maneira como nossas lembranças são adulterada­s, e de alguns flashbacks delirantes, o filme gira em falso com as opções pela câmera na mão e por citações pueris (a de Fellini, convenhamo­s, é de um didatismo pobre). É o peso de uma autoria forte, mas em inadequaçã­o com o material. DIREÇÃO Ruy Guerra ELENCO Tony Ramos, Charles Fricks, João Miguel PRODUÇÃO Brasil, 2016; 12 anos QUANDO estreia nesta quinta (19) no circuito comercial AVALIAÇÃO regular

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