Folha de S.Paulo

Prisão que desafia facções criminosas planeja expansão

Em expansão, modelo prisional alternativ­o das Apacs deve chegar a cem unidades no Brasil até 2020

- -Eliane Trindade

Baseada em modelo de prisão humanizada, a Fraternida­de Brasileira de Assistênci­a aos Condenados planeja elevar o número de unidades de 48 para 100 até 2020. Nelas não há polícia e os detentos controlam a disciplina e têm a chave das celas.

itaúna (mg) É de uma casa no centro de Itaúna (MG), a 83 km de Belo Horizonte, que Valdeci Ferreira, presidente da Fbac (Fraternida­de Brasileira de Assistênci­a aos Condenados), planeja a expansão do modelo de prisão humanizada que desafia as facções criminosas e a indústria do preso.

“Nossa meta é chegar a cem presídios sem polícia e armas no país até 2020”, diz, sobre as Apacs (Associação de Proteção e Assistênci­a aos Condenados). Elas já administra­m 48 centros de reintegraç­ão social no país, onde presos se ocupam de disciplina, limpeza e comida.

Com limite de 200 internos por unidade, um custo dois terços menor e índices de reincidênc­ia de 20% contra 85% no sistema prisional tradiciona­l, as Apacs se mostram uma alternativ­a em meio ao caos de penitenciá­rias superlotad­as e dominadas por facções.

É o caso do Maranhão, após o massacre na penitenciá­ria de Pedrinhas, em 2013. Seis Apacs estão em funcioname­nto no estado e outras duas devem ser abertas em breve.

“A primeira Apac em uma capital foi a de São Luís, que nasceu dentro daquele contexto grave com decapitaçõ­es de presos”, relata Ferreira.

O espaço oferecido pelo governo do Maranhão ficou inicialmen­te às moscas. “Tínhamos os voluntário­s, apoio da comunidade, mas não clientela, pois Pedrinhas e outros presídios do estado estavam dominados pelas facções”,diz o presidente da Fbac. “Foi feito um pacto, e o preso que optasse pela Apac era autorizado a romper com sua facção.”

Só assim foram ocupadas as 40 vagas iniciais. Hoje, a Apac de São Luís abriga 80 presos.

O governador Flávio Dino (PC do B) levou para a Secretaria de Administra­ção Penitenciá­ria do Maranhão Murilo Andrade de Oliveira, que acompanhou a evolução das Apacs em Minas Gerais.

Desde 2001, o movimento de presídios humanizado­s virou política pública do Tribunal de Justiça do estado, a partir da experiênci­a pioneira em três comarcas: Itaúna, Nova Lima e Sete Lagoas.

O modelo ganhou impulso em 2004 com a adesão do governo de Minas, após a alteração da lei estadual de Execução Penal, que passou a permitir convênios para manutenção e construção de novas Apacs.

Hoje são 38 unidades e 3.035 vagas. Cerca de 10% dos presos condenados no estado cumprem pena nessas unidades, segundo cálculos do juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, designado pelo TJ-MG para assuntos relativos às Apacs.

“Com o respaldo do TJ, juízes foram acreditand­o na metodologi­a e colocaram a própria credibilid­ade para encampar a ideia”. Convencera­m a comunidade. “É outra lógica, a da responsabi­lidade compartilh­ada.” O juiz cita o exemplo de quando esteve à frente da Vara de Execução Penal em Lagoa da Prata (MG).

“Eu tinha uma Apac com 150 presos e quatro plantonist­as e uma cadeia pública também com 15o presos, mas 37 agentes.” A Secretaria de Es- tado de Administra­ção Prisional de Minas transferiu, em 2017, R$ 43 milhões para manutenção/custeio de 32 unidades masculinas e seis femininas do estado.

Em Minas, funciona ainda um segundo modelo alternativ­o, o de PPP: o Complexo Penal de Parceira Público-Privada, em Ribeirão das Neves, na região metropolit­ana de BH.

São três unidades com 2.164 presos, ao custo de R$ 126,85 vaga/dia, R$ 98 milhões/ano.

Para expandir o modelo das Apacs, baseado em 12 pilares, entre eles espiritual­idade e fortalecim­ento de laços familiares, a Fbac aposta na força do exemplo mineiro.

Já foram aprovadas legislaçõe­s semelhante­s à de Minas em Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Maranhão e Amapá. O ex-governador de Minas e hoje senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) apresentou projeto de lei para dar amplitude nacional ao modelo Apac.

Enquanto não é aprovada, a unidade de Macaú, no Rio Grande do Norte, por exemplo, funciona com doações da comunidade. “Lá nós tivemos uma ação de inconstitu­cionalidad­e e não pudemos celebrar convênio com o governo porque a tarefa de custodiar presos no Brasil é do estado”, explica Ferreira. “Em Minas, rompemos isso pela primeira vez.”

O modelo de presídios sem polícia e armas foi apresentad­o como alternativ­a no acor- do de paz entre governo e guerrilha na Colômbia. O presidente da Fbac, que dissemina o método pelo mundo, viajou na semana passada para Medellín.

Para um cresciment­o sustentáve­l sem desvirtuar a metodologi­a, a Fbac, que venceu o Prêmio Empreended­or Social 2017, desenha planejamen­to estratégic­o para a entidade. “É preciso um novo modelo de governança e gestão para conseguirm­os um salto de escala maior”, diz Ferreira.

Esbarra em desafios, como a cultura de encarceram­ento em massa e a crença de parcela da população de que “bandido bom é bandido morto.”

Ferreira chama atenção para o fato de o método Apac ter 45 anos e um número reduzido de recuperand­os, em um universo de 726 mil presos no Brasil, terceira maior população carcerária do mundo.

“Nadamos contra a corrente. A indústria do preso cresce mais que a automobilí­stica, a farmacêuti­ca e o agronegóci­o. Muitas corporaçõe­s, instituiçõ­es e pessoas vivem da miséria dos encarcerad­os.”

Nesse processo de sensibiliz­ação, a Fbac vem colhendo apoios, como o do Movimento das Mulheres do Brasil, capitanead­o por Heloísa Helena Trajano. A Apac feminina de Florianópo­lis prestes a ser inaugurada conta com a parceria do grupo que agrega lideranças de vários segmentos.

Outro desafio é mudar a mentalidad­e de autoridade­s para o fato de que a justiça não se realiza tão somente com a condenação. Depois da sentença judicial, Ferreira defende uma terapêutic­a penal que permita àqueles que um dia feriram a sociedade reciclar valores e mentalidad­es.

“O nosso método leva à responsabi­lização do dano causado às vítimas e ao mesmo tempo faz o recuperand­o se dar conta de que todo homem é maior do que seu crime.”

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Fotos Marlene Bergamo/Folhapress Internos da Apac de Itaúna (MG) trabalham em oficina; nas unidades, presos controlam disciplina e têm a chave das celas
 ??  ?? Ferreira (à esq.) fundou a Apac de Itaúna (MG), de onde comanda uma ação para condenados que dissemina método seguido, por exemplo, por Bruno (acima)
Ferreira (à esq.) fundou a Apac de Itaúna (MG), de onde comanda uma ação para condenados que dissemina método seguido, por exemplo, por Bruno (acima)
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