Folha de S.Paulo

Será que a Coreia do Norte pode confiar nos EUA?

- -Patrícia Campos Mello

A promessa de Kim Jongun de encerrar seu programa nuclear é vista com ceticismo. Donald Trump insinuou que o regime é pouco confiável, mas os EUA têm histórico de descumprir compromiss­os.

são paulo A promessa do líder norte-coreano Kim Jongun de abandonar seu programa nuclear foi recebida com ceticismo por vários analistas. O próprio presidente dos EUA, Donald Trump, insinuou que o regime norte-coreano era pouco confiável.

“No passado, os Estados Unidos foram passados para trás, mas meu governo não será enganado”, disse Trump.

“Pode ser que eu saia respeitosa­mente do encontro ou que a reunião nem ocorra”, disse, aludindo à reunião que deve ter com Kim em junho.

Afinal, líderes da Coreia do Norte já garantiram em outras negociaçõe­s que iriam acabar com o programa nuclear, e, por baixo do pano, continuara­m enriquecen­do urânio.

Mas e os Estados Unidos? São confiáveis?

O governo americano também tem um longo histórico de descumprir promessas. Kim sabe disso e vai pensar duas vezes antes de abrir mão de suas armas nucleares, que funcionam como um seguro contra mudança de regime.

O acordo nuclear de 1994, por exemplo, desmoronou por causa dos dois países.

A Coreia do Norte burlou exigências do acordo costurado pelo ex-presidente Bill Clinton. Mas os EUA tampouco respeitara­m sua parte.

Pelo acordo, Pyongyang concordava em paralisar seu programa nuclear.

Em troca, os EUA dariam ao país dois reatores para produção de energia nuclear para fins pacíficos e, enquanto não estivessem prontos, forneceria combustíve­l. Além disso, Washington revogaria as sanções e retiraria a Coreia do Norte da lista de países patrocinad­ores de terrorismo.

Os reatores nunca saíram do papel. As entregas de combustíve­l atrasavam meses. Os EUA levantaram (parcialmen­te) as sanções só em 2000, e o país só foi retirado da lista de patrocinad­ores de terrorismo em 2008, 12 anos depois do prometido.

A Coreia do Norte, por sua vez, estava enriquecen­do urânio para bombas nucleares.

Outro que se deu mal ao confiar nos americanos foi o ditador líbio Muammar Gadaffi. Em 2003, Gadaffi concordou em acabar com seus programas de armas nucleares e químicas, destruir mísseis e abrir o país para inspetores.

Em troca, além do fim do isolamento internacio­nal, Gadaffi recebeu garantias do então presidente americano, George W. Bush, de que os EUA não tentariam derrubá-lo.

Pois foi exatamente isso que aconteceu em 2011, quando, liderada pelos EUA, uma coalizão internacio­nal interveio na Líbia e derrubou Gaddafi.

Aliás, essa não foi a única promessa descumprid­a pelos EUA na ocasião. Ao convencer a Rússia a se abster na votação do Conselho de Segurança da ONU que autorizava o uso de força na Líbia, os americanos haviam garantido que o único propósito seria a proteção dos civis, e não a troca de regime.

Por fim, as ameaças de Trump de rasgar o acordo nuclear assinado com o Irã e outras cinco partes em 2015, apesar de inspetores atestarem que o país está cumprindo os requisitos, é outro alerta.

Quem garante que, caso Kim abra mão do programa nuclear, seu destino não será o mesmo de Gaddafi ou que o próximo presidente americano não irá jogar no lixo um acordo assinado por Trump?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil