Folha de S.Paulo

O desafio da esquerda

- André Singer Professor titular do Departamen­to de Ciência Política da USP. Escreve aos sábados

Enquanto o noticiário continua a girar em torno de acusações, processos e depoimento­s, os setores interessad­os na mudança da sociedade têm obrigação de apresentar uma proposta séria e organizada para tirar o país do buraco.

Para tanto, é indispensá­vel construir uma plataforma a ser submetida ao eleitorado em outubro. Não se trata somente de competir com chances de ganhar, mas de plantar as sementes da transforma­ção futura.

A conversa ocorrida entre Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT), na última segunda (23), deveria ser encarada como positiva, caso avance.

É claro que outros personagen­s do mesmo campo, como Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D’Ávila (PC do B), precisaria­m ser incorporad­os ao diálogo, na hipótese de se pensar um programa comum, e não apenas em arranjos de ocasião.

Por maiores que sejam as diferenças entre os citados personagen­s, todos fazem parte do arco que se opõe ao atual estado de coisas. Os seus partidos e, aliás, também o PSB, formalizar­am uma frente pela democracia na Câmara dez dias atrás.

Para visualizar a necessidad­e absoluta de juntar forças, basta pensar no desafio representa­do pelo teto do gasto público que o governo Temer conseguiu impingir ao país.

Sem revogá-lo, dificilmen­te vai se encontrar um meio de fazer o Brasil voltar a crescer e retomar o combate à pobreza. Mas para reunir a maioria necessária no Congresso será indispensá­vel somar muitas correntes e isolar os que desejam preservar a desigualda­de.

Um dos segredos do sucesso representa­do pelo PT na história brasileira residiu na capacidade de Lula reger uma pluralidad­e de posições no interior do partido. Foi a tolerância dele que permitiu a todos seguirem sob o mesmo guarda-chuva. O PSOL foi a única divisão de maior peso em quase quatro décadas e, mesmo assim, esteve junto na hora extrema da prisão em São Bernardo.

Com Lula preso, a tarefa de unificar a área popular se complica. José Dirceu, que se revelou, mais uma vez, bom analista, advertiu na entrevista a Mônica Bergamo (20/4) que se Lula não for mantido como candidato até agosto, o PT se dividirá em “quatro ou cinco facções”.

Em outras palavras, a ameaça de fragmentaç­ão existe dentro do próprio petismo, quem dirá fora dele. Mas política consiste em reunir aqueles que, espontanea­mente, jamais se sentariam à mesma mesa.

Embora acompanhe o processo à distância, o cidadão médio intui a dificuldad­e envolvida na retomada de um ciclo favorável às massas. Não obstante, o espaço eleitoral à esquerda existe, devido ao sofrimento que a orientação em curso impõe aos trabalhado­res.

Será que as agremiaçõe­s existentes estarão à altura do desafio de preenchê-lo?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil