Folha de S.Paulo

Se quiser parar de enxugar gelo, sangue e lágrimas, é preciso rever lei de drogas

- -Ilona Szabó de Carvalho e Ana Paula Pellegrino Ilona Szabó é diretora do Instituto Igarapé e colunista da Folha; Ana Paula Pellegrino é pesquisado­ra do instituto

Há uma lógica perversa em curso. Um jovem, sem antecedent­es criminais, é flagrado com drogas. Desarmado, sozinho e com uma pequena quantidade de drogas (a média de apreensão de maconha no estado do Rio ficou entre 10 e 15 gramas nos últimos anos), seu destino depende mais da cor da sua pele e do lugar onde foi flagrado do que de outros fatores, que melhor indicariam se tratar de alguém cuja prisão irá impactar de maneira significat­iva a estrutura do crime organizado.

Já sabemos que, no Rio de Janeiro, negros acusados de traficar drogas têm mais chance de terem prisão provisória confirmada, enquanto brancos recebem proporcion­almente mais liberdade provisória.

E pessoas flagradas em território­s sob domínio de facções têm maiores chances de serem acusadas de associação para tráfico, além do processo por tráfico de drogas —independen­temente de maiores indícios de que pertencem, de fato, a algum grupo.

O levantamen­to da Folha vai além: essa dupla imputação adiciona maior tempo de pena e é caracterís­tico do estado do Rio. Uma pessoa condenada por tráfico aqui tem três vezes mais chance de ser também imputada por associação do que em outros estados.

A média de sentença de quem é condenado por esses dois crimes, bem acima de quatro anos, significa que não podem ser aplicadas penas alternativ­as —punição desproporc­ional ao perfil da maioria das pessoas hoje presas por este crime.

Estudos como estes, que se debruçam sobre o sistema de Justiça brasileiro, nos permitem diagnostic­ar os atuais problemas da nossa política de drogas. E precisamos melhorar tanto a lei quanto a sua aplicação.

Falta à lei tirar o uso de drogas da esfera criminal e apontar parâmetros objetivos de distinção entre porte para tráfico e para consumo pessoal, ao empacotar sob um mesmo título a base e o topo da cadeia do crime organizado e trazer a controvers­a figura de associação para tráfico.

E falta orientação para quem está na ponta, de policiais a juízes, aplicando essa lei, sobre qual deve ser a prioridade, o consumidor, ou até mesmo o aviãozinho, que no dia seguinte é substituíd­o, ou quem planeja a importação e a venda de grandes quantidade­s de drogas.

O resultado é a ineficiênc­ia das apreensões de drogas e prisões de pessoas, que desproporc­ionalmente castigam alguns enquanto outros —os cabeças de esquemas de tráfico de drogas e aqueles que portam armas e fazem uso de violência— seguem impunes.

Continuar incorrendo neste erro é custoso para todos nós. Ele inicia um ciclo vicioso, que continua no presídio, onde presos de diferentes periculosi­dades são misturados, e unidades são dominadas por facções, onde réus primários são novos recrutas.

Se quiserem parar de enxugar gelo —e sangue e lágrimas— e ter um sistema de Justiça criminal que contribua de fato para tornar a sociedade mais segura, nossas lideranças políticas precisam ser corajosas e investir nas tão necessária­s reformas na lei de drogas e em instrument­os que orientem sua aplicação.

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