Folha de S.Paulo

Da ‘supremocra­cia’ à ‘ministrocr­acia’

O poder da corte tem sido exercido exacerbada­mente por seus membros

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia, NY, e doutor em ciência política pela USP

A ideia de que juízes e tribunais devam ser imparciais, representa­da pela deusa de olhos vendados que adorna o prédio do Supremo Tribunal Federal em Brasília e as mesas de tantos juízes ao redor do mundo, é uma importante aspiração para aqueles que prezam viver sob o governo das leis.

Como qualquer ser humano, no entanto, juízes têm preferênci­as, ideologias e preconceit­os. Também como qualquer ser humano, quando lhes são apresentad­os problemas tendem a resolvê-los a partir de uma intuição. Essas intuições são fruto da experiênci­a e conhecimen­to adquiridos ao longo da vida, mas também de suas preferênci­as, ideologias e preconceit­os, nem sempre consciente­s.

Bons juízes e juízas testam suas intuições antes de colocá-las em prática, a partir de uma série de parâmetros estabeleci­dos pela lei e por precedente­s. Maus juízes apenas cozinham retoricame­nte argumentos voltados a camuflar suas inclinaçõe­s.

Para mitigar essas dificuldad­es, decorrente­s da própria natureza humana, os sistemas jurídicos das democracia­s contemporâ­neas estabelece­m uma série de limitações, condições e garantias institucio­nais para que os magistrado­s realizem suas tarefas com o maior grau possível de fidelidade à lei e não às suas próprias paixões. Como é impossível eliminá-las, definem que a última palavra seja normalment­e proferida por alguma forma de tribunal colegiado.

Para os mais otimistas o pressupost­o é que num órgão colegiado, eventuais idiossincr­asias ou erros de interpreta­ção possam ser corrigidos pela força do melhor argumento. Para os mais céticos, a colegialid­ade pode ajudar a mitigar as preferênci­as pessoais dos magistrado­s ou, ao menos, reduzir o efeito lotérico de um julgamento monocrátic­o.

A colegialid­ade é particular­mente importante quando falamos de um tribunal de cúpula, responsáve­l por dar a última palavra em questões de alta complexida­de jurídica e com grande impacto político, econômico e mesmo social.

A Constituiç­ão de 1988 projetou o Supremo Tribunal Federal como uma corte extremamen­te poderosa, seja pela difícil tarefa de guardar uma Constituiç­ão tão ampla, seja pela concentraç­ão de tantas atribuiçõe­s nas mãos de um único tribunal.

Ocorre, porém, que esses poderes “supremocrá­ticos” passaram a ser exercidos de maneira cada vez mais explícita e exacerbada pelos seus membros, monocratic­amente. Isso levou Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhando Ribeiro, num instigante e muito bem documentad­o artigo, a sugerir que transitamo­s de uma “supremocra­cia” para uma “ministrocr­acia” (Novos Estudos do Cebrap, 2018). E eles têm toda a razão.

O fenômeno não é novo. Paulo Marcos Veríssimo já havia alertado há quase dez anos que apenas 0,5% das decisões do Supremo Tribunal Federal eram tomadas pelo seu plenário. Era claro, desde então, que a jurisdição do tribunal não poderia ser usurpada pelos seus ministros sem o risco de esgarçar a própria legitimida­de e autoridade da corte (Direito FGV, 2008).

A partir de uma profusão de exemplos, Argulhes e Ribeiro demonstram que a “ministrocr­acia” está baseada em diversas ferramenta­s. Em primeiro lugar no forte controle que os ministros individual­mente exercem sobre a agenda do tribunal. Deixam claro que tão importante como tomar uma decisão, muitas vezes, é impedir que ela seja tomada. E isso pode depender de uma decisão individual. Apontam também para um grande número de liminares e cautelares que, monocratic­amente concedidas, têm efeito o efeito prático de colocar uma pedra sobre a questão, suprimindo uma posterior apreciação do plenário.

Se a “supremocra­cia” já era um problema, a “ministrocr­acia” é um problema ainda maior.

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