Folha de S.Paulo

Levantamen­to da Funai aponta 27 povos isolados ameaçados por obras

Brasil é o país que conta com o maior número de grupos indígenas não contatados, 114

- -Marcelo Leite

são paulo Nenhum país conta com tantos registros ativos de povos indígenas isolados como o Brasil, com 114. E nada menos que 27 deles se acham sob risco de perder essa condição por força de obras com licença ambiental examinadas pela Funai de 2011 a 2017.

O dado consta de um levantamen­to da fundação obtido pela Folha na quinta-feira (26), quando se realizou em Brasília uma marcha de cerca de 3.000 indígenas contra o governo do presidente Michel Temer (MDB), por ocasião do 15º Acampament­o Terra Livre (ATL).

A bancada ruralista do Congresso ganhou força na administra­ção Temer. Um projeto de lei para abrandar o licenciame­nto ambiental estancou na Câmara, mas há outro do Senado (PLS 168/2018), ainda mais ambicioso, pelo qual os índios isolados nem seriam considerad­os no processo para obter licenças.

A maioria dos relatos de grupos não contatados ocorre nas regiões Norte e CentroOest­e, grosso modo na Amazônia. O fato de permanecer­em sem contato com a sociedade urbana, em pleno sécu- lo 21, constitui forte indicação de que não pretendem fazê-lo.

A Funai coleta desde 1987 as informaçõe­s esporádica­s sobre indivíduos ou grupos desconheci­dos avistados na mata por outros índios ou sertanejos. Mobiliza então Frentes de Proteção Etnoambien­tal para confirmar e documentar sua existência, o que pode levar a uma aproximaçã­o controlada.

A ideia é respeitar seu isolamento e preservar o território, além de evitar conflitos, como os que por vezes vitimam os próprios índios e caçadores ou garimpeiro­s. Também se objetiva preservar sua saúde, pois a falta de contato torna os indígenas vulnerávei­s a doenças da cidade, como viroses.

Dos 122 registros já realizados, 8 saíram da lista para ganhar a qualificaç­ão de povos de contato recente, como os Zo’é do Pará.

Entre os casos controvers­os figuram as usinas hidrelétri­cas de Belo Monte, no médio Xingu, Jirau e Santo Antônio, no Madeira, e Telles Pires, no rio de mesmo nome. Todas obtiveram licenças de operação do Ibama, portanto estão em atividade.

As obras foram adiante sem estudos prévios aprofundad­os sobre a presença de isolados pela Funai. O número de técnicos para analisar os processos de licenciame­nto está aquém do necessário, e no ano passado extinguira­m-se 87 cargos comissiona­dos dessa área na fundação.

O Acampament­o Terra Livre (ATL) é organizado pela Articulaçã­o de Povos Indígenas do Brasil (Apib). Um de seus principais objetivos é pressionar o governo federal por homologaçã­o e demarcação de 223 terras indígenas (TIs) ainda em processo de reconhecim­ento.

São quase 95 mil km2 de TIs —uma área maior que a de Portugal— sob incerteza crescente, por força das investidas ruralistas no Congresso Nacional para flexibiliz­ar o licenciame­nto ambiental. O total foi calculado pelo Instituto Socioambie­ntal (ISA), em nota técnica divulgada na quinta-feira (26).

Das 223 pendências, 117 se referem a TIs identifica­das (43) ou declaradas (74) —etapas anteriores à homologaçã­o e demarcação. Mais da metade delas (65) já sofre invasões de fazendeiro­s, posseiros e grileiros, assinala o ISA.

Os projetos de lei em tramitação isentam empreendim­entos agrícolas da obrigação de obter licenças, não importa o porte nem o grau de potencial de dano ao ambiente. Governos estaduais e municipais ganham influência no processo, o que deve dar origem a uma competição no estilo da guerra fiscal com as isenções de ICMS.

No caso das TIs, se aprovada a legislação pró-ruralistas do Senado, a Funai só seria ouvida quando houvesse ameaça direta à terra já homologada, sem pendência alguma.

O problema é que as terras identifica­das aguardam em média nove anos pelo fim do processo, com a homologaçã­o do presidente da República. Há casos de TIs com 33 anos na espera, como Aldeinha (MS), Capivara (AM) e Guapenu (AM).

Se o impacto for indireto, de acordo com o PLS 168, nem mesmo as terras homologada­s seriam incluídas na avaliação de impacto ambiental.

A Terra Indígena SawréMuybu, dos mundurucus, que ainda carece de homologaçã­o, não teria peso algum no licenciame­nto de uma obra do porte da hidrelétri­ca de São Luís do Tapajós (PA). Seria possível alagar 729 km2 de floresta, parte dela em território indígena, sem ouvir a Funai.

Em abril de 2016, porém, o Ibama suspendeu o processo de licenciame­nto com base em parecer da Funai. O órgão apontava impactos irreversív­eis e a necessidad­e de remanejar os mundurucus, em choque com o artigo 231 da Constituiç­ão, que consagra o direito originário dos índios às terras que ocupam tradiciona­lmente.

Procurado pela reportagem, o Ibama diz que: “quando é constatado que alguma área indígena será atingida por um empreendim­ento licenciado pelo Ibama, a Funai vira parte do processo como órgão intervenie­nte, e será dela a competênci­a de analisar a viabilidad­e ou não do empreendim­ento no viés indígena. O Ibama acata a decisão da Fundação”.

Segundo a Funai, “a recomendaç­ão é que se houver registro da presença de povos indígenas isolados, há a necessidad­e de se realizar estudos de campo para qualificar a informação até que possamos confirmá-la. Em caso de confirmaçã­o da presença a recomendaç­ão é que não haja autorizaçã­o para o empreendim­ento”.

O órgão também afirma que não há prazo para concluir os estudos sobre os povos isolados, “pois o trabalho de monitorame­nto e localizaçã­o de índios isolados é contínuo, mesmo em terras já regulariza­das”.

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