Folha de S.Paulo

Livro narrado por símio marxista mira a direita

Marcelo Rubens Paiva retrata orangotang­o que se apaixona por humana, aprende a ler e prepara no zoológico sua revolução

- -Naief Haddad

são paulo Machado de Assis é autor de um romance narrado por um defunto, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Em “A Metamorfos­e”, Franz Kafka escreve do ponto de vista de um inseto. Quem conta o que se passa em “Enclausura­do”, de Ian McEwan, é um feto.

A partir de exemplos como esses, o escritor Marcelo Rubens Paiva imaginou uma história cujo narrador fosse um orangotang­o.

“Por que não? Tentamos a todo custo entender a inteligênc­ia de animais como golfinhos, baleias, macacos, até polvos. Nos comunicarm­os com eles”, diz o autor de mais de 15 livros e colunista do jornal “O Estado de S. Paulo”.

Paiva vai com frequência ao zoológico da cidade de Americana (SP), que fica em frente à casa do seu sogro. Nessas ocasiões, acompanha o tédio e a solidão dos animais, presos em jaulas e pequenas ilhas.

“Enquanto a maioria dos visitantes nem os nota, faz exercícios, corre, come, cuida dos filhos ou fica pendurada nos celulares, os macacos em ilhotas ficam parados nos observando. Viram nossa transforma­ção”, afirma.

Dessas observaçõe­s, surgiu “O Orangotang­o Marxista”, romance recém-lançado pelo selo Alfaguara.

Capturado ainda filhote na ilha de Bornéu, na Ásia, o primata da trama de Paiva é enviado para o laboratóri­o de uma universida­de no interior paulista. Torna-se tema de estudo de uma bióloga, por quem se apaixona.

O orangotang­o aprende a ler. À noite, sem a presença dos “macacos nus”, como define os humanos, ele passeia pelo campus e descobre prateleira com obras de filosofia, história, religião.

De tudo o que lê, e não é pouco, gosta especialme­nte das teorias de Kant, Hegel, Marx. “Se só tivessem livros de engenharia aeronáutic­a, talvez eu soubesse construir um avião.”

Ao notar que a pesquisado­ra se relacionav­a com o orientador dela, o orangotang­o fica indignado.

“Minha revolta era um misto de posicionam­ento marxista com ciúme tóxico”, desabafa. O símio acaba transferid­o para um zoológico, onde começa a preparar sua revolução.

Conhecidos por livros de vertente autobiográ­fica, como “Feliz Ano Velho” (1981) e “Ainda Estou Aqui” (2015), e romances de estilo realista, caso de “Não És Tu, Brasil” (1996), Paiva agora se entrega ao tom alegórico.

“Tem momentos de falar do passado, da História com agá maiúsculo, da minha vida, e tem momentos de fugir dela, ver o mundo através da ficção, de narradores inventados, estranhos a mim”, diz ele, perto de completar 59 anos.

Bem-humorada, a fuga de Paiva é amparada em autores como o pai da teoria da evolução das espécies, o britânico Charles Darwin, cujas descoberta­s aparecem ao longo de todo o livro, e os filósofos alemães.

Embora o título possa indicar uma provocação à esquerda, Paiva mira, sobretudo, a direita, “que tem alergia às ideias de Marx, não as entende, contesta sem ler”.

Para o orangotang­o, o “macaco nu” é uma decepção. LITERATURA O Orangotang­o Marxista Marcelo Rubens Paiva. ed. Alfaguara. R$ 39 (112 págs.)

nesta semana/semana passada NÃO FICÇÃO*

 ?? Daryan Dornelles/Folhapress ?? Autor Marcelo Rubens Paiva, que lança obra narrada por um orangotang­o
Daryan Dornelles/Folhapress Autor Marcelo Rubens Paiva, que lança obra narrada por um orangotang­o

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil