Folha de S.Paulo

Imagino o que é aguentar poetas noite após noite na Mercearia

Local, que começou como mercadinho e tempos depois passou a vender cerveja, faz 50 anos com aura de boteco boêmio

- -Marcelino Freire Escritor, 51, é autor, entre outros, do romance “Nossos Ossos” (Record).

são paulo Marquinhos talvez não venha. Para a festa da Mercearia São Pedro, boteco que hoje faz 50 anos. A Mercearia que quase vira uma loja de material de construção. Ali no mesmo endereço à rua Rodésia, 34, na Vila Madalena.

Marquinhos, menininho, não deixou o pai vender prego e argamassa. Convenceu-o, no ano de 1968, a vender café em pó, água sanitária. Depois cerveja. Mais à frente, livraria e videolocad­ora. Birita preferida de cineastas, escritores, cantores, desenhista­s.

Marquinhos é Marcos Benuthe. Durante muito tempo o nosso Ministro Etílico da Cultura. O presidente da nossa Academia Bêbada de Letras.

Ele anda sumido. Às vezes, sai para molhar as palavras em outros copos, longe dos amigos. E não dá mais notícia. Imagino o que é aguentar, noite após noite, poeta no pé do ouvido, à beira do balcão. Ele e o irmão Pedro Anis. Pedro que toca a Mercearia mais à hora do almoço. E está tocando, sozinho e emocionado, a comemoraçã­o do cinquenten­ário.

A última vez que vimos o Marquinhos foi no comeci- nho do ano, quando ele distribuiu gratuitame­nte obras de Andréa Del Fuego, Marçal Aquino, Ivana Arruda Leite. E com a nossa presença, brindando ao reencontro.

Têm sido raros esses reencontro­s românticos. De toda uma geração que fez da Mercearia sua principal mesa de lançamento­s. Ao lado do sanduíche de pernil, já autografar­am os clientes pioneiros Mário Prata, Reinaldo Moraes, Laerte, Matthew Shirts.

Virou o bar preferido do roqueiro Nick Cave. Depois é que veio Clara Averbuck. Chegou Mário Bortolotto. Mais Marcelo Rubens Paiva. Já enchemos a cara com Jaguar. Batemos uma bola com Sócrates. Brindamos com Xico Sá. Joca Reiners Terron foi quem, nos anos 2000, nos puxou para lá e organizou uma das noites mais históricas do bar, no lançamento da “Antologia Bêbada”.

Lugar bom é aquele que coloca a literatura em seu devido lugar. Trocando as pernas e as letras, caindo e se levantando. Parada é que ela não vai ficar. Sobrevive em pleno movimento, é só reparar. Não é à toa que é igualmente em um bar, o do Zé Batidão, que a literatura está, do outro lado da ponte, com seus agitados saraus, em permanente celebração.

Para marcar essa data histórica a nossa intenção neste sábado é mesmo festejar. Com antigos frequentad­ores, feito Antonio Prata (que ia lá nos braços do pai), e com novos, feito a poeta que, não por acaso, assina Bruna “Beber”. Quase cem pessoas em mais uma antologia criada pelo Joca (e por mim) chamada “Saideira - O Livro dos Epitáfios”.

(O livro será vendido por R$ 20, durante a festa no bar neste sábado, das 16h às 21h.)

Cada artista, por nós, foi convidado a criar sua própria inscrição tumular. Para aquele dia em que o fígado parar de funcionar. Ou ficarmos, até morrer, esperando um dos donos da festa chegar.

Venha, Marquinhos. Em dias tão tristes, numa época em que o ano de 1968 teima em ressuscita­r, queremos (seu irmão Pedro e seus eternos parceiros de toda uma vida) te agradecer e abraçar.

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