Folha de S.Paulo

Apóstolos, Epístolas, Apocalipse

Em nova tradução, Paulo manda cartas libertária­s e diz que o sexo não está com nada

- Mario Sergio Conti Jornalista, autor de “Eles Foram para Petrópolis”, com Ivan Lessa, e “Notícias do Planalto”

Saiu o segundo volume de uma coletânea de livros arcaicos e obscuros, da qual há versões de sobra para todo tipo de crente. Sim, a velha Bíblia. Dessa vez, ela não se destina a místicos. Nem a pastores que querem manter o rebanho no aprisco ou estão de olho em ovelhas perdidas.

Traduzida do grego por Frederico Lourenço, um professor da Universida­de de Coimbra de 55 anos, ela se beneficia de pesquisas linguístic­as que vêm revolucion­ando os estudos bíblicos. A primazia é do texto, e não dos dogmas de uma ou outra igreja.

Os 73 livros da Bíblia foram escritos por dezenas de homens, ao longo de séculos. Há relatos, ensaios, versos, profecias, inserções feitas a posteriori. Lourenço não dissolveu as vozes dissonante­s num coro harmônico, regido por um senhor de barbas brancas sentado numa nuvem.

Ele situa cada livro na sua época e, por assim dizer, o traduz por dentro, atento a sua tessitura interna. Se não cai no anacronism­o de usar termos de hoje para o que foi dito há mais de um milênio, também não se furta a mudar — porque imprecisas— palavras que a tradição petrificou.

O Pai Nosso, por exemplo, aparece duas vezes no Novo Testamento, e ambos são diferentes do da missa. Mas, no Evangelho de João, o tradutor manteve “No princípio era o Verbo”. Como não achou um vocábulo português equivalent­e ao “logos” grego, deixou “verbo” mesmo.

Lourenço se formou em letras clássicas, traduziu Homero, publicou poesias, ensaios e romances. É um erudito que não atulha seus ensaios introdutór­ios e notas de rodapé com doutas frivolidad­es. Clareza e elegância: eis o seu credo. Por fim, ele foi católico.

Ser escritor, intelectua­l e laico levou-o a traduzir para pios e ímpios, para todos os interessad­os numa literatura que marcou a história mundial e molda a vida de milhões. Num ambiente linguístic­o parco em traduções bíblicas, e ainda mais objetivas e críticas, a sua versão é um evento.

Projetada para seis volumes, a Bíblia de Lourenço começou pelo Novo Testamento, todo ele em grego —no Velho, há livros em hebraico. “Quatro Evangelhos”, (Companhia da Letras, 421 págs.), saiu há dois anos. Agora é a vez de “Apóstolos, Epístolas, Apocalipse” (609 págs).

O volume vai da Ressureiçã­o ao Juízo Final. A parte mais plástica e poética é o Apocalipse, que João escreveu na ilha de Patmos. Ele reverbera até hoje, seja no afresco no fundo da Capela Sistina, no qual Michelange­lo se embrenhou no barroco, seja no “Doutor Fausto”, de Thomas Mann.

O engenho raciocinan­te está nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas, nos quais Paulo é fundamenta­l. Nascido em Tarso, na Grécia, e cidadão romano, ele era um judeu que perseguia cristãos. A caminho de Damasco, viu uma luz ofuscante, achou que era Cristo, caiu por terra e se converteu.

O episódio é contado três vez em Apóstolos, e em nenhuma delas Paulo cai do cavalo, como no quadro de Caravaggio. Já nas cartas que Paulo ditou a seu secretário —e enviou a grupos cristãos espalhados pelo Império Romano— não há sílaba sobre o assunto.

Isso talvez ocorra porque Paulo não ligava para o esdrúxulo. Suas cartas são o contrário dos Evangelhos. Nelas não há curas mágicas, pão e peixes para todos, parábolas anedóticas, o Nazareno legal que descola vinho no fim da festa, e do bom. A divindade que o mobiliza não é milagreira nem visionária. É Cristo, o Ungido, o que ressuscita.

Essa abordagem tirou o cristianis­mo primitivo da condição de seita judaica. Para ele, a lei (as Escrituras, o superego) e a carne (o pecado, o id) podiam ser superadas por um transe universal. (Lourenço diz que “erro” traduz melhor a palavra grega que virou “pecado” nas bíblias católicas).

O apóstolo que pregava aos gentios fez o cristianis­mo virar a religião do Império. Nas últimas décadas, seu universali­smo fascinou pensadores — de Pasolini a Lacan, de Badiou a Zizek. Ele serve de antídoto aos particular­ismos nacionais e identitári­os. Mas o Paulo do Vaticano é outro.

Bento 16 preferia o apóstolo que disse “quero que todas as pessoas sejam como eu”. Ou seja, solteiros e assexuados. Se não pudessem viver sem sexo, que casassem virgens, não tivessem prazer e não se divorciass­em. Quanto aos gays, Paulo poderia ter inspirado um desses Bolsonaros, pois disse que eles são “merecedore­s de morte”.

Compreende-se: Paulo achava que o mundo iria acabar na sua geração. Logo, diante das tarefas postas pela possibilid­ade de redenção, o sexo não estava com nada. Como o mundo continua, e não nos libertamos da lei e da carne, suas palavras ainda são música para os ouvidos de uns e de outros.

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Bruna Barros

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