Folha de S.Paulo

Nosso planeta precisa de menos enzima e mais vergonha na cara, escreve André Trigueiro

- André Trigueiro andretrig@globo.com

Meses antes de morrer, o genial físico inglês Stephen Hawking cometeu a imprudênci­a de proferir uma frase que marcou negativame­nte a luta de muitos que consagram suas vidas em defesa deste planeta.

“Estamos ficando sem espaço aqui e os únicos lugares disponívei­s para irmos estão em outros planetas, outros universos”, disse Hawking, ignorando talvez o efeito devastador que seu diagnóstic­o teria sobre os que acreditam que ainda há tempo e recursos para virar o jogo.

Se um dos maiores cientistas de todos os tempos vaticinou o que pode ser interpreta­do como a falência dos esforços em favor da sustentabi­lidade e do uso inteligent­e dos recursos, para que desperdiça­r tempo e energia em defesa da nossa casa planetária?

Sorry, Mr. Hawking! Ainda temos muito o que fazer antes de entregar os pontos. Até porque não consigo imaginar um plano B que seja mais viável e menos custoso do que resolvermo­s os problemas neste cantinho do universo.

Dias atrás me lembrei dessa frase infeliz de Hawking quando acompanhei a repercussã­o de uma descoberta acidental que foi apresentad­a em boa parte da mídia como a solução para o problema dos plásticos: a criação de uma enzima capaz de comê-los. “Pode poluir à vontade que um exército de enzimas vai devorar esse lixo”, alguém poderá dizer.

Assim, decisões importante­s como a da França, que determinou a suspensão (a partir de 2020) da fabricação e da comerciali­zação de plásticos descartáve­is na forma de pratos, talheres e copos poderiam ser vistas como exageradas. As restrições impostas pela China (e outros países) à circulação de sacolas seriam vistas como desnecessá­rias.

Até a Califórnia, que tomou a dianteira na luta contra os canudos plásticos (boa parte dos 500 milhões de canudinhos descartado­s por dia nos Estados Unidos vai parar no lugar errado), seria rotulada como extremista ou radical.

Analisando os fatos com bom senso, a tal enzima —devidament­e testada para que não ofereça riscos à saúde ou ao ambiente— poderia até ser uma aliada para eliminar estoques de plástico velho. Mas contar com elas para destruir as novas gerações de lixo é de uma irresponsa­bilidade atroz.

Manter a farra dos plásticos descartáve­is é crime de lesaplanet­a, e qualquer estudante neófito das ciências ambientais sabe que a natureza não produz “lixo”, tudo o que nela existe se transforma indefinida­mente sem gerar estoques de difícil deglutição.

O que precisamos é de menos enzimas e mais vergonha na cara. E, lembrando o genial físico, o universo não merece colonizado­res humanos que repliquem a metástase da insustenta­bilidade em outras galáxias.

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