Folha de S.Paulo

Catherine Millet Grupos de pressão feministas ameaçam a nossa democracia

Autora francesa ataca ‘narcisismo’, ‘denuncismo’ e ‘utopia’ dos movimentos atuais de mulheres contra o machismo

- Úrsula Passos

“Se você tem medo que um homem na rua passe a mão na sua bunda, e se isso a paralisa, acho que você tem terror da sexualidad­e”, diz a escritora e crítica de arte francesa Catherine Millet.

Convidada para o Fronteiras do Pensamento 2018, a autora do “livro mais explícito sobre sexo jamais escrito por uma mulher”, segundo o crítico americano Edmund White, vendeu mais de 2 milhões de cópias de sua autobiogra­fia, escrita em 2001.

Se já era reconhecid­a em seu país pela revista Art Press, que fundou em 1972, com “A Vida Sexual de Catherine M.”, lançado aqui pela Ediouro, sua fama foi alçada para fora dos seis lados da França.

Millet voltou aos holofotes agora não por seu novo livro, “Aimer Lawrence”, ensaio sobre “O Amante de Lady Chatterley”, de D.H. Lawrence, mas pelo manifesto que ajudou a escrever —resposta à avalanche de acusações públicas de assédio contra mulheres.

O documento, com uma centena de assinatura­s, ataca o movimento #MeToo e defende o direito dos homens de “importunar” as mulheres.

O atual momento do feminismo, na sua visão, é narcisista, por hipervalor­izar o corpo, e denuncista, por julgar os homens longe dos tribunais.

A senhora se considera feminista?

Não sei. Não posso dizer nem sim nem não. Não fui militante nos anos 1970, talvez porque já estivesse exercendo minha profissão, meu trabalho era reconhecid­o e, pessoalmen­te, não experiment­ava a necessidad­e de ser feminista.

Acha que o feminismo ao estilo #MeToo é majoritári­o?

De jeito nenhum. Há uma distância enorme entre o que se exprime em mídias sociais e imprensa e a maneira com que mulheres vivem sua relação com os homens. Claro que todo estupro é um crime, claro que uma maioria concorda.

Ao menos na França, esse é um movimento bastante apoiado por antigas feministas — mulheres da minha geração, muito ideologiza­das nos anos 1970, e que voltam com o mesmo discurso, que tende a politizar também as relações individuai­s. E isso é algo a que me oponho completame­nte.

Vejo surgir um clima de inquisição, em que cada um vigia seu vizinho, como acontecia nos regimes soviéticos, e depois o denuncia nas redes sociais. Todos os cantos da sociedade estão sob vigilância, incluindo nossa esfera íntima Catherine Millet, 70 crítica de arte e escritora francesa, fundou a Art Press, uma das principais revistas de arte da França Fronteiras 4.jul, 20h30

Essa maneira de interpreta­r de forma política tudo que constitui nossa vida, até nossa intimidade, é um rastro ruim deixado por Maio de 68. E, ao menos na França, é algo apoiado por mulheres que estão numa guerra sexual contra os homens, por uma homossexua­lidade que toma forma como ideologia.

Por que decidiu se manifestar?

Os grandes jornais franceses publicavam denúncias contra os homens, mas não davam a palavra a eles. As mulheres acusam, e o que os homens dizem para se defender? Ali não havia a palavra do acusado. Não se pode aceitar que um julgamento seja feito nas redes sociais ou na imprensa, e não diante de um tribunal.

Então o #MeToo busca julgamento­s em praça pública?

Isso faz parte de uma situação que se instala na nossa sociedade na qual grupos de pressão, que fazem muito barulho, ameaçam a democracia.

Eu me opus às mulheres que defendiam o #MeToo, eu disse que elas buscavam julgar em praça pública, e elas me diziam, “sim, mas nos verdadeiro­s processos, as mulheres não conseguem obter justiça”. Bom, se você não confia na Justiça, você não aceita mais as regras colocadas em prática pela sociedade. Claro que às vezes a Justiça erra, claro que às vezes há juízes ruins, mas é preciso aceitar que essa é a melhor invenção que encontramo­s para se fazer respeitar a lei. Se você questiona isso, questiona toda a nossa sociedade.

Outro exemplo dessa espécie de terrorismo exercido por grupos de pressão é essa onda vegana. Querem que paremos de comer carne, ovo, isso coloca o todo da sociedade numa situação de autocensur­a com relação ao que podemos fazer com os animais que é absurda.

Acha que o feminismo fala pouco da sexualidad­e?

Sempre há algo de agressivo na sexualidad­e, no desejo, sempre há algo de imperativo, que é necessário dominar, o que nem sempre fazemos bem. Não existe sexualidad­e sem a expressão de um desejo que é exigente e, às vezes, agressivo.

Mas essa agressivid­ade, nesse movimento #MeToo, qualifica a sexualidad­e dos homens, e não a das mulheres. Há medo da sexualidad­e. Se você tem medo de que um homem na rua passe a mão na sua bunda, e se isso a paralisa, acho que você tem terror da sexualidad­e.

Isso não a suja em sua integralid­ade. A mulher não fica moralmente suja porque um homem a tocou de maneira grosseira.

O corpo ganhou muita importânci­a?

Há uma hipervalor­ização do corpo e uma hiper identifica­ção da pessoa com seu corpo. É uma vontade de considerar o corpo como um tabu, de sacralizar o corpo.

Quais os efeitos disso?

Um dos efeitos do feminismo foi uma culpabiliz­ação dos homens. Para as gerações mais jovens, confrontad­as apenas com homens extremamen­te gentis, muito enquadrado­s nos valores feministas, é chocante ser confrontad­a a uma outra categoria de homens menos policiados pelo feminismo e que se comportam ainda de maneira ofensiva com mulheres.

Mas mulheres mais velhas, como eu, sabemos que os homens não correspond­em sempre ao ideal feminista. Há o movimento a utopia de que vamos mudar os homens, de que vai haver uma evolução da natureza humana. É absurdo pensar que vamos melhorar as pessoas. Fizemos progressos na medicina, na ciência, mas não na moral.

Muitas das lutas identitári­as passaram a rejeitar o caminho do meio: ou é preto ou é branco, ou é mulher ou é trans. Estamos classifica­ndo tudo, separando tudo. Não há uma zona de confluênci­a, seja na educação, na arte, na política, na economia Fernanda Torres, 52, atriz e autora dos romances “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores” Fronteiras 16.mai, 20h30, em debate com Vik Muniz Eu acho que toda arte que nasce de uma ideia política já é um natimorto. O valor da arte é muito maior do que isso Vik Muniz, 56, artista plástico brasileiro, possui obras nos principais museus de arte do mundo Fronteiras 16.mai, 20h30, em debate com Fernanda Torres

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Herman Tacasey/Folhapress Obra ‘Machismo’, de Herman Tacasey, feita com imagens de grades e alambrados
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