Folha de S.Paulo

Militantes rebatem dizendo que crítica despolitiz­a a relação homem-mulher

- Fernanda Mena

Narcisista. É nessa mesma moeda que feministas ouvidas pela Folha adjetivam declaraçõe­s da escritora e crítica de arte Catherine Millet sobre a atual militância de mulheres.

Para elas, Millet usa sua experiênci­a pessoal como medida para o mundo, e acha feio o que não é espelho, quando diz que há algo de agressivo no desejo e que mulheres temerosas de que lhes passem a mão na bunda têm, na verdade, “terror da sexualidad­e”.

“Mais uma vez vemos Millet falando de sexo como se só existisse uma sexualidad­e: a dela”, diz a escritora e jornalista peruana Gabriela Wiener. Autora de ensaios e crônicas nos quais relata suas experiênci­a sexuais, Wiener diz ter se apropriado de sua libertinag­em por influência do livro “A Vida Sexual de Catherine M.”, no qual a francesa trata de sua movimentad­a vida sexual.

“Millet me ajudou a me posicionar enquanto mulher que deseja e fala sobre sexo. Mas ela enxerga a luta feminista a partir de seu grupinho de mulheres privilegia­das de Paris, enquanto, na América Latina, estamos acostumada­s, desde meninas, a sermos tocadas em ônibus lotados”, diz a autora de “Sexografia­s” (Foz, 2016), único de seus livros lançado no Brasil.

“Quando fala no ‘direito de importunar’, como na carta contra o #MeToo, Millet usa o eufemismo mais asqueroso que posso imaginar para embaralhar coisas que não têm nada a ver: o sexo pleno, livre e autônomo e o sexo violento e abusivo”, diz Gabriela.

A blogueira feminista e professora de literatura na Universida­de Federal do Ceará Lola Aronovich diz que Millet analisa os movimentos de mulheres “como se a vida girasse em torno de suas experiênci­as pessoais com os homens”, enquanto a maioria das feministas “pensa nas mulheres como um todo”.

Para Tatiana Roque, matemática e filósofa da UFRJ e co- editora da “Revista DR”, feita só por mulheres, Millet tenta esvaziar a pauta feminista ao dizer que ela politiza relações pessoais e íntimas, o que seria uma espécie de herança maldita de Maio de 1968.

“Millet não tem noção do que é política e, como despolitiz­a tudo, mistura uma questão social e política — ninguém poder ultrapassa­r meu espaço sem que eu dê permissão— com uma questão individual e moral, o sentir-se ameaçada”, diz.

Criador do projeto Papo de Homem, que debate questões contemporâ­neas do universo masculino, Guilherme Valadares questiona a ideia de Millet de que homens não podem adaptar seu comportame­nto a novas demandas femininas, mas pondera que o processo não é instantâne­o.

“Acompanho homens que passam por processos legítimos de transforma­ção. Não tenho dúvidas de que isso é possível, mas sei que não é linear e que quase nunca anda na velocidade desejada”, diz.

Para ele, os homens estão sem referência­s saudáveis de masculinid­ade. “Cientes de que não devem ser violentos ou abusivos, escutam muito o que um homem não deve ser, mas pouco sobre o que ele pode vir a ser”, afirma.

Ela vê a luta a partir de seu grupinho de privilegia­das de Paris enquanto, na América Latina, somos tocadas em ônibus lotados desde meninas

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