Folha de S.Paulo

Ataque xenófobo une uma dona de bordel e um pastor evangélico

Numa pequena cidade do interior de Roraima, venezuelan­os e brasileiro­s vivem uma espécie de ‘crash’ amazônico

- Fabiano Maisonnave e Eduardo Anizelli

Foi uma aliança improvável diante de um inimigo em comum. Em Mucajaí, cidade de 17 mil habitantes a 57 km de Boa Vista, a dona de prostíbulo Maria do Carmo da Silva, a Neguinha Branca, e João Batista, o pastor Joãozinho, lideraram um protesto contra venezuelan­os que terminou em um violento ataque xenófobo.

Revoltados com o assassinat­o de um morador em uma briga de bar na qual também morreu um venezuelan­o, dezenas de pessoas invadiram um abrigo e incendiara­m os pertences de 50 imigrantes, que fugiram do local.

Um vídeo feito no dia do ataque, em 19 de março, mostra Neguinha Branca arrastando um colchão para o meio da rua, onde mais tarde seria queimado com roupas, redes de dormir e documentos.

Já o pastor Joãozinho, com microfone ao lado do carro de som, gritava “justiça” enquanto muitos bradavam “fora, venezuelan­os”.

Coordenado­ra informal do abrigo, Amparo Urdaneta, 46, é um dos 18 venezuelan­os que continuara­m em Mucajaí após o ataque. Os demais fugiram para outras cidades ou voltaram ao país natal.

“Pareciam formiguinh­as subindo pelo muro”, diz Amparo sobre o ataque.

Há três anos no Brasil, ela é de Puerto la Cruz, cidade caribenha a 1.200 km de Mucajaí, onde moram três filhos e quatro netos. Era vendedora ambulante das tradiciona­is arepas, discos de farinha de milho, mas o negócio ruiu por falta de matéria-prima.

Evangélica fervorosa e líder do grupo, ela colocou regras na entrada do abrigo. É possível ler no cartaz, entre outras proibições: “Não roubar nada de nós mesmos” e “Não entrar mulheres da vida alegre”.

Sem colchões, a maioria dos 34 venezuelan­os no local dorme sobre lençóis e papelão. No dia em que a reportagem esteva lá, o almoço era arroz com osso, feito em panelas sobre uma fogueira no quintal.

Mesmo antes do ataque, a animosidad­e contra os venezuelan­os já vinha crescendo.

Amparo diz que se surpreende­u com a participaç­ão do pastor Joãozinho. Um mês antes do ataque, ele visitou o abrigo, fez um culto ali, levou um sopão e distribuiu roupas.

Em encontro recente entre os dois evangélico­s, Joãozinho disse que se limitou a falar pelo microfone, mas pediu perdão pela violência.

“‘Perdão você tem de pedir a Deus, mas eu te aceito’”, diz Amparo, relembrand­o a conversa com o religioso.

A reportagem encontrou Joãozinho na rodoviária, à espera de um ônibus para Boa Vista. De baixa estatura, com roupas e sapatos formais, mas puídos, aparenta ter mais do que os seus 39 anos.

Radialista desemprega­do, é na verdade evangelist­a da Assembleia de Deus, a um degrau de se tornar pastor. Ele diz que, no protesto, só queria chamar a atenção das autoridade­s, mas que foi contra vandalizar o abrigo e que tem ajudado venezuelan­os com roupas e alimentos.

Por outro lado, citou como verdadeira­s notícias falsas segundo as quais o abrigo concentrar­ia pedófilos e traficante­s que iriam atacar com granadas a encenação da SextaFeira da Paixão na cidade.

“Sou brasileiro. Não estava expulsando ninguém, estava apenas lutando pela nossa nação, o Brasil. O Brasil está na baderna para se fazer o que quer”, afirma Joãozinho.

Expulsa de prostíbulo, venezuelan­a tem medo de apanhar na rua

Sentada no bar sem clientes no final da tarde, Neguinha Branca, 48, explica à reportagem que, até pouco tempo atrás, o lugar estaria cheio àquela hora, graças às 11 prostituta­s venezuelan­as que dormiam nos fundos do local.

Amiga de Eules de Souza, morto a pauladas na briga de bar, ela admite ter participad­o da organizaçã­o do protesto.

Revoltada com o assassinat­o, decidiu tirá-las dali. “Disse a elas: ‘Não tem como ficar. Teu paisano matou meu paisano’, afirma a dona de bar, de olhos claros, pele branca e cabelos encaracola­dos.

Algumas foram para o prostíbulo de sua filha, em Apiaú, a 40 km do centro. Quando a

Folha foi ao local, um casebre de madeira com mesa de sinuca, havia cinco venezuelan­as à espera de clientes.

Neguinha diz que sempre tratou bem as imigrantes.

“Dava café, almoço, janta, não cobrava nada delas. Meu lucro era da bebida”, afirma.

A história foi confirmada por Jaqueline (nome fictício), 27, uma das 11 venezuelan­as. Depois do ataque, ela foi morar a algumas quadras de distância, na casa de um dono de bar, mas segue amiga da expatroa, com quem fala diariament­e via WhatsApp.

Jaqueline é uma ex-vendedora que teve de recorrer à prostituiç­ão para sustentar a filha de dez anos. A maioria dos escassos trabalhos disponívei­s em Roraima é braçal, e só homens são contratado­s.

“Comigo, ela se portou muito bem. Diziam que obrigavam as mulheres a trabalhar, mas não era assim. O dinheiro que conseguíam­os era nosso”, diz.

Ela conta que, após o ataque, ficou duas semanas sem sair. “Diziam que, se vissem um venezuelan­o na rua, iam bater. Agora, se acalmaram.”

Há quase um ano no Brasil, Jaqueline diz preferir viver em Mucajaí, cidade que, em 2013, virou notícia ao eleger prefeito um médico cubano.

“Em Boa Vista, tem de trabalhar na rua. Tenho medo. Roubam, estupram e matam . Prefiro um lugar. É mais seguro.”

Uma sociedade saudável só existe quando qualquer questão pode ser discutida ou exibida de uma forma que haja condições para argumentos a favor e contra Ai Weiwei, 60, artista plástico, designer e cineasta chinês, usa suas obras para ativismo Fronteiras 10.out., 20h30 Priorizou-se a política simbólica de querer reconhecim­ento, em vez de ganhar eleições. E essa política enxerga o país apenas como uma série de tribos. Então como eles vão conseguir chegar a uma visão geral se eles não acreditam na nação como um todo? Mark Lilla, 62, cientista político e historiado­r norte-americano Fronteiras 21.nov., 20h30, em debate com Luiz Felipe Pondé

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‘Fila’, do artista plástico Herman Tacasey, que usa foto em alto contraste para criar o efeito óptico Herman Tacasey/Folhapress
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Eduardo Anizelli/Folhapress Na página ao lado, abrigo atacado em Mucajaí ; acima, venezuelan­os caminham entre Pacaraima e Boa Vista; ao lado, acampament­o Simón Bolívar, em Boa Vista
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