Folha de S.Paulo

Embarque nesta canção de ninar cheia de dilemas e papeis invertidos

Elos atuais entre empregado e patrão e criança e adulto compõem tragédia da franco-marroquina Leïla Slimani

- Maurício Meireles

O pai, em um quase-sono, imagina seu apartament­o como um aquário invadido por algas apodrecida­s, uma fossa onde o ar não circula e animais sarnentos andam em círculo, grunhindo.

Essa imagem é uma das descrições que se insinuam como um mau agouro pelas páginas de “Canção de Ninar”, livro que rendeu à franco-marroquina Leïla Slimani o Goncourt, principal prêmio literário da França, em 2016.

O mau agouro tem motivo. O romance conta a história de um casal, Paul e Myriam, oprimido pela rotina, que encontra a babá perfeita. Louise não vai cuidar só das crianças —todos os membros da casa vão se embalar nos braços dela, protegidos pelo seu amor.

Um amor que, de tão perfeito, é por vezes assustador. Até que um dia a mãe chega em casa, vê a confusão com vizinhos, polícia, ambulância, e descobre: o menino está morto, a menina não vai resistir. A assassina é a babá.

Não é spoiler, a cena é narrada no primeiro capítulo. A partir dali, descobrire­mos como Louise chegou àquele ato. Os personagen­s evoluirão como em uma tragédia grega, submetidos a um destino determinad­o pela escritora logo ao princípio.

Como costuma acontecer aos vencedores do Goncourt, o livro vendeu 600 mil cópias na França. E ganhou traduções em diversas línguas, tornando a autora um fenômeno mundial. Além de participar do ciclo Fronteiras do Pensamento 2018, ela é uma das convidadas da Flip neste ano.

O presidente do troféu literário, ao concedê-lo a Slimani, lembrou que a Academia do Goncourt costuma eleger livros do passado —e, daquela vez, escolheu um romance que fala ao presente e seus problemas de todo dia.

“Canção de Ninar” não é um livro dado à experiment­ação literária. Seu estilo, pelo contrário, é transparen­te, para ser lido de uma talagada só —mas é sim atual.

No primeiro olhar, está a relação de poder entre patrões e empregados. Aqui, porém, Slimani não desfia um rosário da má consciênci­a de classe.

Na casa da família, os pais têm poder sobre a babá, mas o contrário acontece de forma mais clara —e o casal se curva a uma doce submissão. Com ela, eles querem chegar a um paraíso burguês de felicidade.

O leitor brasileiro talvez estranhe a culpa dos patrões em relação à babá —algo mais raro em nossa herança escravocra­ta. Eles sentem medo que Louise possa vê-los com sacolas de compras, não querem que se sinta humilhada diante do que não pode ter.

Slimani ainda realiza uma inversão: numa França marcada pela imigração árabe, quem é marroquina é a patroa. A babá é branca e, por isso, acusada pelo marido de fazer o trabalho de uma negra —até em seu próprio mundo, com outras babás, a personagem é uma alienígena.

O romance deixa no ar outro dilema: é possível uma mulher se emancipar da herança patriarcal sem, com isso, subjugar outra mulher?

Quanto a isso, a autora já disse ver a questão na imagem de uma matrioshka: uma mulher, dentro de outra mulher, dentro de outra mulher. Há sempre uma a garantir a felicidade da outra. Mas qual o custo na última ponta?

Por exemplo, enquanto cuida dos filhos alheios, a vida de Louise se esfacela —sua filha, destruída por uma sensação de abandono e pela humilhação infligida involuntar­iamente por sucessivos patrões da mãe, é expulsa da escola e acaba fugindo de casa.

A babá perfeita, perdida em grande solidão, com dívidas até o pescoço, não é capaz de operar o mesmo milagre em sua família.

O lar, em Slimani, aparece cheio de sombras. As crianças, em vez de trazerem alegria, reforçam a solidão dos adultos—não é possível, afinal, fazer confissões a elas ou mesmo ter sua total atenção.

Ao fim, em uma história narrada com o ritmo de um thriller, “Canção de Ninar” é capaz de reunir dilemas sociais, econômicos e também morais.

Para mim, escrever é liberdade, liberdade de tudo. Quando escrevo não sou mulher, não sou muçulmana, não sou marroquina. Posso me reinventar e reinventar o mundo Leïla Slimani, 36 escritora e jornalista franco-marroquina, vencedora do prêmio Goncourt Fronteiras 20.jun., 20h30

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Szépművész­etiMúzeum/Museum of Fine Arts, 2018 ‘Hommage à Jean-Sébastien Bach’ (1973), de Vasarely
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