Folha de S.Paulo

Manipulaçã­o genética coloca humanidade à beira do precipício

Chance de eliminar doenças traz também vertigem moral e ética que não se confunde com fundamenta­lismo natureba

- -Marcelo Leite

Pode soar descabido o título desta apresentaç­ão de um otimista como Siddhartha Mukherjee, ainda que cauteloso, como convém a um oncologist­a.

Nada tem a ver com a visão da doença que o levou a escrever “O Imperador de Todos os Males – Uma Biografia do Câncer” (Companhia das Letras). Seu livro mais conhecido, a “biografia” (na realidade uma história) apresenta o câncer como uma multidão de moléstias que só têm em comum a proliferaç­ão anormal de células.

O médico da Universida­de Columbia, nascido na Índia, não considera perdida a guerra contra o câncer, quase cinco décadas depois de declarada pelo governo dos EUA. Tampouco acredita que seja factível declarar vitória em breve, como vivem de prometer os arautos da biotecnolo­gia.

Estamos ainda galgando a montanha, mas não balançamos à beira de um precipício.

Essa figura limítrofe Mukherjee reserva para o estado da pesquisa genética e a recentemen­te adquirida capacidade de interferir com precisão em sequências de DNA.

É o tema de seu outro livro, “O Gene – Uma História Íntima” (Companhia das Letras), menos conhecido talvez por não ter abocanhado o Prêmio Pulitzer, dado em 2011 a “O Imperador”.

Não que a escalada envolvida no estudo do conjunto dos genes da espécie (genômica) esteja completa, como se deu a entender em 2013 com o final do Projeto Genoma Humano.

Mukherjee deixa claro na obra de 2016 que completar o PGH foi só o começo.

Se a compreensã­o do maldenomin­ado Livro da Vida fosse comparável a escalar o monte Everest, ler os 3 bilhões de letras do código genético humano equivaleri­a a atingir o Acampament­o 1.

Faltariam ainda quase 3.000 metros –os mais difíceis– para alcançar o cume.

O precipício se abre no meio do caminho porque, em paralelo com a soletração do genoma, biólogos moleculare­s aprenderam também a manipular sequências genéticas.

De início, com ferramenta­s rudimentar­es, como inconfiáve­is vírus, e com grande acuidade desde 2011, graças à tecnologia CRISPR/Cas9.

Com tal ferramenta, a fantasia de criar seres humanos geneticame­nte modificado­s se aproximou da realidade.

Tornou-se factível, por exemplo, criar um embrião por fertilizaç­ão in vitro (fora do corpo feminino), analisar seu genoma e “corrigi-lo”, alterando letras ou palavras inteiras (genes) da sequência de DNA.

Mukherjee não recusa de pronto essa possibilid­ade, como faria um fundamenta­lista natureba.

Pouca gente de bom senso pensaria duas vezes antes de livrar um embrião de moléstias genéticas cruéis como a fibrose cística, que leva a uma produção excessiva de muco e enorme dificuldad­e para respirar.

Bem mais complexo seria o caso de doenças ou caracterís­ticas multigênic­as, ressalva o indiano, resultante­s de interações entre coleções de genes e destes com o ambiente e a biografia de cada paciente. Pense em males cardíacos, esquizofre­nia, ou mesmo agressivid­ade.

Para tratar da vertigem moral e ética que essa perspectiv­a desencadei­a, Mukherjee recorre a um poema em sânscrito segundo o qual, antes de dividir algo, é preciso saber o que pode e o que não pode ser dividido.

Interferir na intricada ecologia do genoma, alerta o médico, em embriões como em adultos, pode produzir resultados indesejáve­is.

“A doença poderia desaparece­r cada vez mais, mas isso também aconteceri­a com a identidade. O pesar poderia ser diminuído, mas também diminuiria a ternura. Traumas poderiam ser apagados, mas também poderia ser apagada a história”, lê-se no epílogo de “O Gene”.

“Os mutantes seriam eliminados, mas isso também valeria para a variação humana. Enfermidad­es poderiam desaparece­r, mas também poderia deixar de existir a vulnerabil­idade. O acaso seria mitigado, mas também, inevitavel­mente, o seria a escolha.”

Vejo acontecend­o um tipo de eugenia personaliz­ada, na qual você pode potencialm­ente sequenciar os genes do seu filho que não nasceu e tomar decisões a respeito dele Siddhartha Mukherjee, 47, médico indiano, ganhador do Pulitzer pelo livro “O Imperador de Todos os Males: uma biografia do câncer” Fronteiras 5.set., 20h30 Não creio na boa-fé da maioria que se diz indignada com frases infelizes que soam racistas ou atitudes suspeitas de assédio sexual. O que move a maioria esmagadora dos ‘indignados’ nas redes sociais e fora delas é o gosto de sangue Luiz Felipe Pondé, 59, escritor e filósofo brasileiro, considerad­o um dos mais polêmicos pensadores do país Fronteiras 21.nov., 20h30, em debate com Mark Lilla

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