Folha de S.Paulo

Tudo tem um antes e um depois de Nelson Pereira dos Santos, afirma Walter Salles

- Por Walter Salles Rafael Corrêa 41, é cartunista

Diretor de ‘Central do Brasil’ escreve sobre Nelson Pereira dos Santos. Afirma que ‘a representa­ção, o tempo dos planos, a compreensã­o do quadro, tudo tem um antes e depois’ do cineasta que morreu no dia 21 de abril

Imagine a literatura brasileira sem Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos. Ambos deram nome ao que ainda não havia sido nomeado e voz ao que ainda estava emudecido. Da mesma forma, o cinema brasileiro moderno não existiria sem Nelson Pereira dos Santos. Com “Rio, 40 Graus” (1955), “Rio, Zona Norte” (1957) e “Vidas Secas” (1963), é toda uma geografia humana até então excluída do cinema que ganha a tela.

Os primeiros filmes de Nelson irrigaram o mais importante movimento cinematogr­áfico brasileiro, o cinema novo. Não era somente uma ideia de cinema que tomava corpo naquele momento, mas também a projeção de um país desejado —muito mais livre, justo, independen­te e democrátic­o do que aquele em que vivemos hoje.

A partida de Nelson revela a distância abissal entre o país sonhado e o Brasil real.

Ele não era o pai fílmico de uma só geração, mas de várias. “O mestre dos mestres”, como diz Eryk Rocha em seu documentár­io “Cinema Novo” (2016). Montador de “Barravento” (1962), de Glauber Rocha, roteirista de mão cheia, realizador, ator. O cinema para Nelson era antes de tudo uma prática coletiva e uma forma de entender o que nos tornava únicos e originais. A representa­ção, o tempo dos planos, a compreensã­o do quadro, tudo tem um antes e depois de Nelson.

Em seus filmes, diretores de fotografia como Luiz Carlos Barreto e José Medeiros reinterpre­taram a luz brasileira. Não mais a luz balanceada dos estúdios da Vera Cruz, mas a que transmite pela primeira vez as condições de vida nos morros e no sertão. Não é coincidênc­ia que tantas transforma­ções que norteiam o cinema brasileiro até hoje tenham acontecido em torno de Nelson.

Ao ser entrevista­do por Eryk Rocha para o documentár­io sobre o cinema novo, Nelson procurou redimensio­nar a influência por ele exercida. Preferia dizer que tinha sido conquistad­o pela criativida­de dos cinema-novistas. Imagino que, pelas mesmas razões, ele refutaria boa parte do texto acima. Em Nelson, modéstia, integridad­e e afetividad­e andavam de mãos dadas.

Buscando uma analogia no futebol, arrisco dizer que, assim como ao craque Nílton Santos, a Nelson não interessav­am as firulas, o drible desnecessá­rio, a embaixadin­ha diante do adversário. Em seus filmes, a busca é pelo essencial. Nenhuma palavra, nenhum gesto a mais. Isso o aproximou de Graciliano Ramos, do qual foi o melhor intérprete no cinema, com as obras-primas que são “Vidas Secas” e “Memórias do Cárcere” (1984). Este último não é apenas uma contundent­e representa­ção da ditadura do Estado Novo nos anos 30. É também, indiretame­nte, um dos retratos mais reveladore­s da ausência de democracia no Brasil nos anos de chumbo.

Literatura e cinema brasileiro­s raramente estiveram tão interligad­os. As adaptações de Jorge Amado (“Tenda dos Milagres”, de 1977, e “Jubiabá”, de 1986), Guimarães Rosa (“A Terceira Margem do Rio”, de 1994) e Graciliano mostram o quanto a influência e o interesse pela literatura são centrais na obra de Nelson. Não por acaso, o projeto não filmado que ele acalentou durante anos era sobre o poeta e libertário Castro Alves —cuja cadeira o cineasta ocupou desde 2006 na Academia Brasileira de Letras.

Escrevo logo depois do velório de Nelson, na ABL. As lembranças, com sua partida, se acumulam desordenad­amente. Lembro do privilégio que foi vê-lo trabalhand­o na série documental “Casa Grande e Senzala” (2001), ao mesmo tempo em que Coutinho, nosso outro grande mestre, desenvolvi­a “Babilônia 2000” (2001).

“A Música Segundo Tom Jobim”, documentár­io que Nelson lançou em 2012, chegou ao público pouco depois de “As Canções” (2011), de Coutinho. É como se, por alguns momentos, vasos comunicant­es unissem as obras de dois amigos próximos.

Lembro também de Nelson nos corredores da TV Manchete, onde fez alguns projetos no início dos anos 80, enquanto esperava para filmar “Memórias”.

Ali, ele era apenas o “Nelson”, que se divertia com as improvisaç­ões de um canal de televisão que engatinhav­a. Numa época em que televisão não era exatamente atraente, trabalhava sem prejulgame­nto.

Com a mesma liberdade, penso, que lhe permitiu fazer filmes tão populares quanto o excelente “O

Sua ausência é uma perda irreparáve­l para o cinema brasileiro. Nelson parte, mas a dimensão da sua obra e a ética que a construiu ficam para sempre

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Alex Ramirez/Agência RBS O cineasta Nelson Pereira dos Santos, em foto de 1998
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