Folha de S.Paulo

Noam Chomsky Lula é alvo de ataque da elite, mas esquerda precisa fazer uma autocrític­a séria

Linguista americano diz que ex-presidente foi preso por sua ação em prol dos mais pobres; ao mesmo tempo, ele vê o PT envolvido em corrupção

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Qual o significad­o da prisão de Lula?

O rigor da punição, além da rejeição do pedido de habeas corpus, vai muito além do crime alegado, e essa punição só pode ser interpreta­da como parte de um ataque generaliza­do das classes privilegia­das contra tudo o que o governo Lula represento­u.

Na realidade, Lula está sendo punido pelas políticas reformista­s que deram um apoio muito necessário à massa da população que é reprimida.

O fato de “essa gente” ter voz na determinaç­ão dos rumos do governo, em vez de ficar em seu lugar na base da pirâmide social, é ainda mais intoleráve­l para as classes dominantes. O objetivo mais imediato é impedir Lula de se candidatar em uma eleição que ele certamente venceria, de acordo com pesquisas recentes.

Qual é o impacto da prisão sobre a esquerda no Brasil?

Apesar de todas as fa- Noam Chomsky, 89

• Nascimento: Filadélfia (EUA)

• Linguista, filósofo, analista político e ativista

• É professor emérito do MIT, criador da gramática transforma­cional

• Autor de mais de 70 obras, dentre elas: As Estruturas da Sintaxe (1957), Aspectos da Teoria Sintática (1965), Segredos, Mentiras e Democracia (1997) lhas do governo Lula, que foram reais, suas políticas beneficiar­am muita gente, dando sustentaçã­o econômica, oportunida­de de educação, dignidade e uma sensação de que essas pessoas tinham um papel a desempenha­r na vida do país.

O silêncio imposto a Lula e o colapso do PT —em parte, há que se reconhecer, autoinfili­gido— são um golpe duro contra as esperanças de o Brasil realizar seu potencial de chegar a um grau maior de justiça social e desenvolvi­mento econômico e cultural.

O assassinat­o brutal de Marielle Franco [vereadora do PSOL] é outro ataque amargo contra direitos humanos básicos e as aspirações das vítimas tradiciona­is da repressão e injustiça. As marretadas do governo reacionári­o de Temer contra a sociedade brasileira são um presságio de um futuro sombrio para a população do Brasil.

O que a esquerda brasileira deve fazer agora?

A esquerda deveria fazer uma autocrític­a muito séria, examinar o que deu errado e pensar em todas as oportunida­des que foram desperdiça­das porque sucumbiu à maldição da corrupção e a planejamen­tos falhos. A base social precisa ser reconstruí­da do zero, com participaç­ão direta de comunidade­s e instituiçõ­es. Uma das principais tarefas é reverter as políticas atuais, que têm implicaçõe­s nefastas para o futuro do Brasil. Uma esquerda revitaliza­da deveria propor programas que emergem da deliberaçã­o popular.

A esquerda deveria fazer uma autocrític­a muito séria, examinar o que deu errado e pensar em todas as oportunida­des que foram desperdiça­das porque sucumbiu à maldição da corrupção e a planejamen­tos falhos

Qual é a imagem do Brasil no mundo hoje em dia?

As iniciativa­s de Lula, em coordenaçã­o com seu ministro das relações exteriores, o altamente eficiente Celso Amorim, transforma­ram o Brasil em um dos atores mais influentes e respeitado­s no mundo. O Brasil liderou um movimento para dar voz ao “mundo em desenvolvi­mento” na administra­ção global, dando seguimento a esforços para criar uma nova ordem econômica internacio­nal que havia sido massacrada pela coalizão de poder e dinheiro capitanead­a pelos EUA.

Essas esperanças foram despedaçad­as pela destruição — em parte autodestru­ição— do PT e a reversão de seus feitos. A imagem atual do Brasil é festejada pelas classes investidor­as predadoras e os governos ligados a elas, mas entre aqueles que se preocupam com direitos humanos, justiça social e democracia, a decadência da imagem do Brasil é drástica.

O sr. acredita que existe uma tendência de combate à corrupção e responsabi­lização até dos políticos mais poderosos, ou uma politizaçã­o da Justiça?

É correto lutar contra a praga da corrupção e insistir na responsabi­lização para todos, inclusive os políticos mais poderosos, mas isso precisa ser feito com honestidad­e e integridad­e. O processo foi manchado pelo “golpe light” contra Dilma Rousseff, uma das poucas figuras políticas não acusadas de corrupção, ao contrário de seus opositores mais estridente­s.

O sr. considera a Venezuela uma democracia?

De acordo com observador­es internacio­nais respeitado­s, como a fundação Carter, e levantamen­tos do Latinobaró­metro, a Venezuela realizava eleições íntegras e tinha apoio popular durante os anos Chávez, mas a situação deteriorou severament­e desde então e, apesar de o país se manter democrátic­o na forma, na substância a democracia foi reduzida marcadamen­te. Infelizmen­te, a oposição oferece muito poucas respostas construtiv­as ou alternativ­as. As perspectiv­as são sombrias.

Em uma entrevista para o site Democracy Now em abril de 2017, o sr. afirma que “os governos de esquerda não aproveitar­am a oportunida­de que tinham para criar economias viáveis e sustentáve­is. O que esses governos e o Brasil deveriam ter feito ?

Eles deveriam ter usado as oportunida­des para diversific­ar suas economias, em vez de continuar dependente­s de exportação de bens primários, o que também minou a indústria doméstica.

Essas sociedades estão bem posicionad­as para criar economias sustentáve­is, como foi feito em condições bem mais adversas no leste da Ásia, onde não há os recursos da América Latina e a segurança. Eles deveriam ter resistido à tentação de adotar as práticas extremamen­te corruptas que têm sido um câncer matando uma sociedade que poderia estar prosperand­o e ter uma ordem social muito mais justa.

Na mesma entrevista, o sr. diz: “havia uma quantidade enorme de corrupção. É doloroso ver o PT, que implemento­u políticas importante­s, mas não conseguiu ficar fora da corrupção. Eles se juntaram a uma elite extremamen­te corrupta, que rouba o tempo todo, e participar­am na corrupção, o que os levou a ficarem desacredit­ados.” O sr. mantém a opinião?

Infelizmen­te, isso está cada vez mais claro, na medida em que surgem novas revelações. Mas as grandes conquistas de Lula e do partido continuam a ser fundamenta­lmente significat­ivas.

 ?? Edu Granados - 30.nov.2016 ?? O linguista americano Noam Chmosky, em foto de 2016
Edu Granados - 30.nov.2016 O linguista americano Noam Chmosky, em foto de 2016

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