Folha de S.Paulo

Hiperinfla­ção perto de 14.000% faz papel-moeda evaporar na Venezuela

Falta de dinheiro vivo transforma transações no país e cria economia paralela pautada por comissões

- -Sylvia Colombo

caracas Há algo errado num país em que, diante de uma máquina de café num centro comercial popular, você precisa colocar 70 notas de mil para servir-se de um expresso simples. E ainda ouvir de quem espera atrás: “Às vezes ela trava e não devolve o dinheiro que você já colocou”.

Esse tipo de máquina não foi criada para a Venezuela.

Com hiperinfla­ção de 6.000% anuais, segundo a Assembleia Nacional de maioria opositora (o FMI fala em 1.088% em 2017), um novo e crescente problema se soma à escassez de alimentos e recursos para a saúde no país: a evaporação do papel-moeda.

Para o ditador Nicolás Maduro, o sumiço de bolívares é parte do que chama de guerra econômica contra seu país.

Ele diz que a “oligarquia esconde o dinheiro por razões políticas”, e contraband­istas levam as cédulas para fora do país. Nos últimos tempos, acusa o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, de roubar moeda da Venezuela.

Parte da explicação está na imigração maciça de venezuelan­os ao país vizinho, pois muitos levam consigo todas as suas economias. Mas a principal razão para a falta de cédulas no país é que nem a emissão de dinheiro dá conta de acompanhar a inflação.

Às 5h30 de uma terça, diante de um dos grandes bancos em uma das principais vias de Caracas, Ramón Tovar, 29, conta ter chegado uma hora antes à fila que só cresce até o banco e os caixas eletrônico­s abrirem, às 9h30. “A coisa vai mais rápido se as pessoas vêm só com um cartão. Por isso é bom chegar cedo, tem menos concorrênc­ia.”

Logo surgem duas senhoras de Guaíra, a 30 km de Caracas. Uma traz 10 cartões, a outra, 18. Ambas portam uma lista de nomes, números e senhas.

Uma delas, Alejandra Caicedo, 54, explica: “É de gente idosa ou doente, ou que entra cedo no trabalho e não pode ficar horas na fila. E os bancos de lá têm ainda menos dinheiro que os de Caracas, então fazemos isso uma vez por semana ou mais. Cobramos pouco, é pela comunidade”.

Depois, admite que sua taxa é de 20% do que elas conseguire­m sacar, mais o valor Nicolás Maduro exibe modelo de nota de 100 bolívares em Caracas

das passagens de ônibus.

Por dia, o limite de saque de um correntist­a é de 20 mil bolívares (em poucos bancos, de 30 mil), o que equivalia no câmbio paralelo nesta terça (1º) a R$ 0,11 e comprava uma garrafa de água de 500 ml.

A escassez de bolívares ainda abala o comércio local com distorções, taxas e comissões para quem tem moeda.

Onde se aceita cartão de débito, o drama é menor, ainda que se pague mais caro.

“E nós que vendemos comida de rua?”, pergunta Roberto Olivera, 53. A solução para quem não tem dinheiro vivo, ele conta, é a promessa de que o consumidor ao chegar em casa faça uma transferên­cia para a conta do comerciant­e.

Alta na era Chávez, a inflação explodiu enquanto Maduro estava no poder Inflação média anual na Venezuela café pingado goiabada farinha de milho quilo de carne “Muitos pagam, outros somem”, resigna-se.

O viajante se impression­a com cardápios e lojas: um bife à milanesa num restaurant­e de classe média custa 1 milhão de bolívares; uma camiseta, 50 milhões. Um quilo de frango no bairro pobre do Petare, 4 milhões.

As padarias têm tabelas para calcular a alta semanal de determinad­o produto. E quase todos os comércios têm a máquina de contar dinheiro.

Em campanha eleitoral, Nicolás Maduro anunciou na segunda (30) um aumento do salário mínimo para 1 milhão de bolívares —ou US$ 1,61.

Mas em partes do interior esse valor pouco importa, pois a inexistênc­ia de dinheiro ressuscito­u o escambo.

A situação ainda criou um sistema paralelo no qual quem tem acesso a dinheiro vivo —porque recebe do governo, como aposentado­s e pensionist­as, ou vendedores e taxistas— multiplica a renda ao vender o papel-moeda que recebe pelo dobro do valor de face. A transação é feita virtualmen­te ou em dólar.

Trocar dólar no paralelo é outro drama. As comissões de cambistas saltaram de 20% no ano passado para quase 180%, e o governo aperta o cerco ao que chama de “máfias cambiárias”: na semana passada, prendeu 86 cambistas. Quem é pego trocando no paralelo também pode ser penalizado.

Muitas coisas do dia a dia, porém, só podem ser pagas em dinheiro na Venezuela: ônibus, remoções por ambulância, procedimen­tos em estatais e compra de comida em mercados populares.

Com a represália, os hotéis já não trocam dólar. É comum que, no check out, o hóspede espere por contatos locais para passar um cartão de débito venezuelan­o (o cartão internacio­nal cobraria pelo valor oficial do bolívar, mais alto).

Os saguões ficam parecendo casas de câmbio, com hóspedes acertando em dólar com quem pagou sua conta.

Ante o problema, os dois principais candidatos têm propostas diferentes. O opositor Henri Falcón, líder nas pesquisas, propõe dolarizar a economia. Já o ditador Maduro diz que a Venezuela deve se livrar dos dólares que a submetem ao império e criar sua criptmoeda, o petro.

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Presidênci­a da Venezuela/Reuters
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Keziah Daum, 18, com vestido chinês que usou no baile

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