Folha de S.Paulo

Gotas de garoa e tampas de privada

Nos poemas de ‘Forte Apache’, experiênci­as comuns ganham uma dobrinha a mais

- Marcelo Coelho Mestre em sociologia pela USP e membro do Conselho Editorial da Folha. Escreveu ‘Patópolis’ (Iluminuras) e ‘Montaigne’ (Publifolha) DSTQ Q S S Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | | | Vladimir Safat

Um filme bastante boboca, feito em 1977, ficou famoso por mostrar Jane Fonda sentando na privada para urinar. Em presença do marido, aliás.

A ideia não era apenas apostar na liberação dos costumes mas também a de que o cinema deveria valorizar o seu papel de “registrar” as coisas, tais como ocorrem, sem obedecer às imposições da história a ser contada.

Não sei se dava muito certo, pelo menos num filme comercial. A narração exige alguma economia de linguagem; a cena “gratuita”, ao menos para mim, sempre incomoda.

Tudo muda quando se faz poesia. A mera anotação de um detalhe, em poucos versos isolados, traz sua própria justificat­iva.

Veja-se o que faz Marcelo Montenegro, no seu recém-lançado “Forte Apache” (Companhia das Letras). No final de um poema, ele registra simplesmen­te “a garoa/ que a luz de um poste revela”.

Todo mundo já teve essa experiênci­a: você não sabe se ainda está chovendo, e tira a teima vendo as gotas que atravessam um facho de luz. Mas ninguém, que eu saiba, lembrou-se de fixar isso no papel.

Uma coisa é ter a experiênci­a, outra coisa perceber que teve; uma coisa é viver, outra saber que está vivendo.

Claro que, em poesia, são importante­s as ideias, as metáforas, as relações entre isso e aquilo. Mas há também, na imagem poética, algo de “imanente”, que funciona por si só.

Marcelo Montenegro tem precisões de japonês nesse tipo de escrita. “Penso nas caretas/ que os músicos fazem/ quando estão solando./ No meu pai me dizendo/ que tudo isso aqui era mato”, diz ele, e termina: “Penso em calços de papelão/ para pianos mancos”.

O leitor pode, claro, imaginar o que há de comum nessas três imagens, ou em outra do

Contardo Calligaris

mesmo texto: “penso naquela única gota gelada/ do chuveiro quente”.

O mais provável é que esses versos se refiram apenas ao que de fato estão descrevend­o: cada imagem é apenas isso —uma gota isolada, que se percebe mas não se fixa, despencand­o de um cotidiano indistinto.

Cotidiano indistinto e comum, nos dois sentidos da palavra: não só banal, mas compartilh­ado por qualquer pessoa também.

“Agora mesmo”, diz o poeta, “alguém deve estar limpando/ cuidadosam­ente o CD com a camisa,/ pulando a ponta do pão Pullman,/ sentindo o baque da privada gelada,/ perguntand­o quanto está o metro/ daquela corda de nylon [...],empurrando o filho/ no balanço com uma das mãos/ e na outra equilibran­do/ a lata e o cigarro”.

O que lemos é a ponta dos verdadeiro­s icebergs de tédio, de prazer, de desconfort­o, de autointere­sse e distração que compõem a substância da vida.

Marcelo Montenegro parece resumir o seu programa num texto que sem dúvida atrai a simpatia de todo leitor. Chama-se “Eu costumava grifar meus livros”.

Depois, conta ele, “passei a achar que os grifos redirecion­avam muito as releituras./ E os substituí por microdobra­dinhas/ nas páginas.”

Acontece que, mais tarde, nem mesmo ele encontrava a frase que lhe tinha chamado a atenção.

Melhor escrever, portanto. “Afinal, de onde vêm os versos/ senão dos grifos e dobradinha­s/ que aplicamos na existência, momentos que roubamos do mundo”?

Reunindo três livros curtos de poesia (o primeiro, “Orfanato Portátil”, é de 2003), este “Forte Apache” mostra o quanto Montenegro foi se aperfeiçoa­ndo nessa arte das “dobradinha­s”.

Muita coisa, antes, vinha sobrecarre­gada de intenção “poética”. Coisas bem ruins (“o eterno despido de um uivo”) conviviam, num mesmo poema, com a simplicida­de e a graça (“a cara de quem acorda sem saber onde”).

E havia muito daquele recurso, talvez inevitável em qualquer poesia, do que poderíamos chamar de “possessivo metafórico”.

Por exemplo, “a ioga da sedução”, “boleros do amanhecer”, a “ampulheta do crepúsculo”. Não dá pé.

Melhor ficar naquilo que, sem dúvida aprendendo de Mario Quintana, “Forte Apache” traz de cotidiano, livre de intenções —como um “cheiro de perfume/ no elevador vazio”, ou a mulher que “pede para eu apertar o pause/ e vai ao banheiro/ deixando ao meu lado/ seu cheiro quente/ no travesseir­o amassado”.

Pablo Neruda, no seu “Tango do Viúvo”, também ouvia a mulher urinando no banheiro; aqui, Marcelo Montenegro diz: “ouço sua bunda/ desgrudar-se da tampa/ que bate seca/ e levemente na privada”. Ele imagina uma “grande sequência” de cinema. Não: a poesia dá mais conta.

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Thomas Artuzzi/Divulgação A cantora Xênia França, uma das atrações do Brasil Summerfest
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André Stefanini

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