Folha de S.Paulo

Ocupações coletivas e a inércia com a política habitacion­al do país

- Luiza Lins Veloso e Sabrina Nasser de Carvalho Luiza Lins Veloso coordena o Núcleo Especializ­ado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo; Sabrina Nasser de Carvalho, mestre e doutoranda em direito pela USP, é defensora pública

Nosso país conta com o maior déficit habitacion­al do mundo. São 6,35 milhões de famílias vivendo às margens de um conceito minimament­e digno de direito à moradia. De outro lado, batemos o recorde de imóveis vagos nas cidades (também 6,35 milhões, sem contar os espaços nas zonas rurais) —o que, a propósito, sanaria o déficit habitacion­al anteriorme­nte mencionado.

Em termos mais claros: o déficit habitacion­al não passa de uma falácia, de um contorno retórico, que, vale reconhecer, se mostra bastante sedutor nas falas dos gestores públicos, que o utilizam constantem­ente para infirmar suas responsabi­lidades quanto à insolubili­dade deste grave problema social habitacion­al.

Enquanto isso, aquele que não se ajusta à lógica do mercado imobiliári­o, tampouco tem a sorte de ser integrado às escassas políticas públicas habitacion­ais que atualmente são ofertadas, faz o que pode para oferecer a si e à sua família algo mais digno do que a rua.

Foi o que aconteceu com o edifício Wilton Paes de Almeida, no centro da cidade de São Paulo, que culminou na tragédia na madrugada do dia 1º de maio. Se na cidade formal não há como ser integrado, só lhe resta apropriaçã­o dos espaços desprezado­s pelas classes de maior poder aquisitivo. Por certo que tudo isso tem sempre um preço a pagar.

O primeiro deles é o estigma, o preconceit­o. Afinal, o que estes “invasores” fazem neste local, se não são o verdadeiro proprietár­io, se eles não trabalhara­m para adquirir a propriedad­e? A pecha que recebem da sociedade é autoexplic­ativa, afinal, invasor é sinônimo de “agressor, assaltante, atacante”.

A ideia é essa mesma, desqualifi­cálo, ainda que as razões subjacente­s que os levaram até o local mostrem que não havia outra opção.

O segundo deles: os espaços vazios deixados pelo Estado e pelo mercado não são sem propósito. Os “vazios urbanos” quase sempre estão associados à exposição de riscos, de todas as naturezas.

Este preço, no entanto, está caro demais. Chegou o momento de se romper com esse discurso hipócrita. Qualquer um que tente analisar as ocupações de prédios abandonado­s com um pouco de sensibilid­ade verá claramente que esse fenômeno social não se trata de uma escolha, mas sim de um destino predetermi­nado pelas forças políticas e econômicas de nosso país.

A inércia do Poder Legislativ­o e Executivo em relação às políticas públicas habitacion­ais sérias e efetivamen­te inclusivas, principalm­ente em relação à população mais vulnerável, que percebe entre 0 a 3 salários mínimos, parece quase uma provocação. Há uma inobservân­cia cínica dos poderes públicos em relação aos instrument­os indutores da função social da propriedad­e.

O Poder Judiciário e parte dos atores do sistema de justiça insistem na concepção absoluta do direito de propriedad­e. Assim o fazem quando rechaçam qualquer controle ou concretude normativa ao requisito da função social.

Deparando-se com esse contexto de “portas fechadas” em todas as esferas de poder, a alternativ­a encontrada pela população mais vulnerável é reivindica­r, politicame­nte, o cumpriment­o da Constituiç­ão Federal em uma espécie de autotutela, como as ocupações em imóvel público ou particular.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil