Folha de S.Paulo

Ministros convergem para restringir foro, mas esbarram em dificuldad­es técnicas importante­s

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Há quase um ano, o Supremo Tribunal Federal começou a rediscutir a questão do foro especial.

O motivo foi um processo contra o ex-deputado federal Marquinho Mendes, do PMDB do Rio de Janeiro.

Acusaram-no de comprar votos —com notas de R$ 50 e quilos de carne— na sua campanha para prefeito de Cabo Frio. Com Marquinho já fora do cargo, seu processo deixou de ser julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral, caindo na primeira instância.

Só que ele virou suplente de deputado federal. Assumiu o cargo. Deixou o cargo. Voltou ao cargo (no lugar do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha). E depois renunciou ao cargo, para se tornar (de novo) prefeito de Cabo Frio.

Com tantas idas e vindas, seu processo ia mudando de instância. Pela Constituiç­ão, um deputado federal só pode ser julgado pelo Supremo. Saindo do Congresso, o deputado deixa de ter essa “prerrogati­va de foro”, e seu caso vai (e volta) para as mãos de outros juízes.

Para acabar com essa “montanha-russa processual”, o ministro Luís Roberto Barroso, relator do processo de Marquinho no STF, propôs uma nova interpreta­ção da Constituiç­ão de 1988.

Um deputado federal ou senador só deveria ser julgado pelo Supremo, disse Barroso, numa situação: a dos crimes que tenha cometido “no seu cargo” e “em função” do seu cargo.

Outras irregulari­dades — numa campanha para prefeito, numa diretoria de estatal ou na vida comum— continuari­am a cargo da primeira instância.

Mais: depois das alegações finais, o processo continuari­a no foro especial, mesmo se o acusado deixasse o cargo.

A proposta encontrou simpatia da maioria do Supremo. Mas escondia algumas dificuldad­es técnicas importante­s, levantadas primeiro por Alexandre de Moraes, e depois por Dias Toffoli.

Na quarta-feira, Toffoli apresentou um longo voto, primeiro para argumentar que restrições ao foro especial não trariam, ao contrário do que se pensa, grandes ganhos no combate à corrupção.

Para cada Sergio Moro, que prende políticos, ninguém garante que não existam dezenas ou centenas de juízes de primeira instância que estão submetidos às oligarquia­s locais.

De qualquer modo, Toffoli sabia que a tendência era alterar a regra. Desenvolve­u então uma alternativ­a que já tinha sido proposta por Alexandre de Moraes.

A ideia é que seria dificílimo definir se um crime foi cometido “em razão” de um cargo qualquer, como queria Barroso.

Suponha que um deputado dê um soco em alguém, numa discussão política. É crime para a primeira instância ou foi “em razão” do cargo? No fim, o STF teria de interpreta­r cada caso, atrasando mais o processo.

Melhor decidir que o foro se aplica para qualquer crime —mas só se cometido depois de feita a diplomação do parlamenta­r.

Era ceder bastante na direção da maioria do STF, diminuindo a extensão atual da prerrogati­va de foro. O caso de Marquinho Mendes sairia da Suprema Corte, sem os riscos contidos na proposta de Barroso.

Por exemplo, há a hipótese de um delegado local “plantar” provas de crime comum —sem relação com o cargo— contra um congressis­ta. Adeus, proteção ao mandato eletivo.

Haveria outras consequênc­ias, lembrou Ricardo Lewandowsk­i. O foro não atinge apenas políticos. Pode acontecer de um juiz de primeira instância passar a ser jugado pelo “colega da sala ao lado”, e não por um tribunal superior...

E como ficam os parlamenta­res estaduais, prefeitos, autoridade­s locais?

As Constituiç­ões de cada estado trazem diferentes listas de “privilegia­dos” em matéria de foro.

Na sessão do dia seguinte (quinta-feira), Toffoli apresentou uma solução para isso: as diferenças dos estados com relação à nova regra seriam considerad­as inconstitu­cionais.

Dezesseis mil casos de foro especial cairiam com isso, calculou.

Faltava o voto de Gilmar Mendes. Por mais de duas horas, ele fez a crítica de todo o sistema penal brasileiro, cujos males não dependem da questão do foro.

Mas acabou concordand­o com as modificaçõ­es propostas por Toffoli. Em resumo, era simples: quem comete crime quando está fora do cargo não tem o foro de quem está dentro do cargo.

A maioria não se convenceu. A proposta de Barroso, que distingue os “tipos de crime” —conforme “relacionad­os” ao cargo ou não— saiu vencedora, contra a opinião de Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Lewandowsk­i e Gilmar Mendes.

Para cada Sergio Moro que prende políticos, ninguém garante que não existam dezenas ou centenas de juízes de primeira instância que estão submetidos às oligarquia­s locais

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