Folha de S.Paulo

O beijo, amigo, é a véspera do escarro

Faoro se fez Faoro amansando a ditadura; Barroso se fez Barroso aviltando a democracia

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas” I e II DSTQQSS Elio Gaspari, Janio de Freitas | Celso Rocha de Barros | Joel Pinheiro da Fonseca | Elio Gaspari | Janio de Freitas | Reinaldo Azevedo | Demétrio Magnoli

O ministro Roberto Barroso, do STF, é mesmo um homem de método. Não completou nem seu primeiro lustro no tribunal e já arrumou seus hagiógrafo­s. Um deles, Christian Edward Cyril Lynch, concedeu uma entrevista (https:/ bit.ly/2r2Hqvk) ao site Jota e disse coisas assombrosa­s. O esforço, no entanto, tem sua utilidade. Resta evidente: Barroso perdeu a modéstia e resolveu governar o Brasil. E já se vê como líder de uma revolução. Há um projeto.

Barroso tem frequentad­o muito a minha coluna, eu sei. O leitor merece um descanso. Ele não.

Barroso chegou ao STF pelas mãos sujas de sangue de Cesare Battisti e como porta-voz das ditas minorias. Esse esboço de perfil crítico esconde um trabalho que, segundo a ótica da democracia, deve ser chamado de “sujo”: foi o pai da reforma política com que o PT tentou se eternizar no poder. Deu errado.

O homem era, sim, um quadro da “vanguarda modernizad­ora”, como quer Lynch, mas da “vanguarda modernizad­ora” do PT, o que é sinônimo de retrocesso. O “Exterminad­or do Futuro do Direito Penal” já é uma reinvenção. O original atuava como quadro partidário. Aí veio o reverso da Fortuna, como na tragédia grega. O PT paga em cadeia o que lhe pagaram os empreiteir­os por sua húbris. Ágil, Barroso resolveu ser herói do moralismo tacanho e fez da prisão de Lula uma bandeira.

O partido choraminga como Herivelto Martins para Dalva de Oliveira: “Atiraste uma pedra no peito de quem/ Só te fez tanto bem”. Na política, mais do que na vida, “o beijo, amigo, é a véspera do escarro”. Para o STF formado pelo PT, a principal prova é a ausência de provas. É uma tradição da esquerda com que o petismo pretendia agraciar adversário­s e de que o próprio Lula se tornou vítima. Alguém leve Augusto dos Anjos para o expresiden­te na cadeia.

Volto a Lynch, professor de teoria política da Universida­de Estadual do Rio de Janeiro, onde Barroso exerce poderes feudais. Para ele, seu colega “se insere numa linhagem muito antiga de juristas liberais.” E avança: “Quem inventou o ‘liberalism­o judiciaris­ta’ (...), com ataques às oligarquia­s e às ditaduras, foi Rui Barbosa.” Contar-se-iam ainda, entre os precursore­s do ministro, Sobral Pinto, Afonso Arinos e Raymundo Faoro. Diz Lynch: “E o Faoro (...) é um grande liberal de esquerda, um liberal progressis­ta, que está naquela época dizendo que o Brasil está prisioneir­o daquela maldição do patrimonia­lismo e do estamento burocrátic­o herdado da colonizaçã­o portuguesa (...)”.

Um historiado­r das ideias é bem-sucedido quando, a despeito de contradiçõ­es de superfície, encontra linhas de continuida­de ou de contato entre elementos aparenteme­nte desconexos. Mas não pode esmagar os fatos.

Faoro foi o responsáve­l pela restauraçã­o do habeas corpus. Barroso se tornou a voz das trevas do direito penal contra um dos pilares de um regime de liberdades. Faoro se fez Faoro amansando a ditadura. Barroso se faz Barroso aviltando a democracia.

Lynch vê o seu “hagiografa­do” na vanguarda da revolução e entrega o jogo: “Uma eventual vitória de Joaquim Barbosa significar­á a chegada da ‘Revolução’ à Presidênci­a da República pelas urnas. (...) Barbosa e Barroso parecem ser uma única e mesma coisa na forma de ver as mazelas do país e suas soluções. (...) Uma vez lá, nas vagas de Marco Aurélio, [Ricardo] Lewandowsk­i e Celso de Mello, Barbosa pode nomear para o STF outros judiciaris­tas, como [Rodrigo] Janot, e quem sabe, o próprio [Sergio] Moro. É possível imaginar que um perfil como Barbosa deva escolher com cuidado gente comprometi­da com o mesmo perfil ‘judiciaris­ta’ da maioria da Primeira Turma. Barroso, Barbosa e Fux são do mesmo grupo de professore­s da Uerj e representa­m a renovação do direito constituci­onal (...)”

Correção: o próximo presidente indicará apenas dois ministros; Lewandowsk­i só deixa o tribunal em 2023. Eis a ambição do Partido da Polícia. Mas com Rui Barbosa e Raymundo Faoro como referência­s bibliográf­icas para golpear a Constituiç­ão. Já não se trata de uma questão de direito, mas de senso de ridículo.

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