Folha de S.Paulo

Exemplo único no centro de SP, prédio é reformado por sem-teto

Políticas tendem a preferir construçõe­s novas; edifício tem síndicos ‘linha dura’

- -Angela Pinho

são paulo Marli Baffini, 60, viu pela janela o início do incêndio no edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, na madrugada de terça-feira (1º). Ao seu lado, estava o amigo e vizinho Wemerson Silva, 32. “Foi o tempo de ele virar de costas, e desabou tudo”, lembra ela.

Agora sem o arranha-céu na paisagem, a vista da cidade é uma novidade para muitos no prédio de Marli e Wemerson, síndica e subsíndico do edifício Dandara, na avenida Ipiranga. Ela, por exemplo, pela primeira vez dorme em um quarto com janela após quase quatro décadas em São Paulo.

Seu apartament­o é um dos 120doimóve­l,localizado­aduas quadras da avenida São João.

O prédio abrigou a Justiça do Trabalho a partir da década de 1970 e ficou mais de dez anos vazio até receber as famílias sem-teto que se mudaram para lá em janeiro, após uma reforma completa.

Empreendim­entos como esse não são regra na cidade. Apontada por urbanistas como exemplo do que poderia ser feito em prédios abandonado­s no centro, como o que desabou, a revitaliza­ção de edifícios ociosos para moradia social é uma exceção no país.

“O Brasil não tem uma cultura de reformas de prédios para habitação”, diz o urbanista Kazuo Nakano, professor da Unifesp. “Lisboa, por exemplo, teve e, por isso, tem um centro muito dinâmico”, afirma.

“Ligadas ao fomento da construção civil, as políticas habitacion­ais sempre estiveram obcecadas em construir casa”, completa Raquel Rolnik, docente da Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo da USP.

Exemplo disso é o Minha Casa Minha Vida. O maior programa habitacion­al do país já financiou 126 empreendim­entos em São Paulo, mas apenas três são “retrofits” —termo do jargão construtiv­o que designa a atualizaçã­o de imóveis antigos com reaproveit­amento de alguns elementos.

Um desses três “retrofits” é um empreendim­ento privado, também na avenida Ipiranga. Os outros dois são prédios reformados pelo movimento Unificação das Lutas de Cortiço (ULC) por meio do Minha Casa Minha Vida - Entidades.

Por essa modalidade do programa, movimentos de moradia se responsabi­lizam pela entrega dos imóveis, com financiame­nto da Caixa.

São as entidades também que escolhem quem vai morar no imóvel, com base nos requisitos do Minha Casa e em critérios próprios, como participaç­ão em ocupações e atos.

Dos três “retrofits”, o Dandara é o único em que moradores escolheram de detalhes do acabamento às regras de condomínio.

Pertencent­e à União, o prédio foi cedido à ULC após ser invadido em 2009. A construção começou cinco anos depois, com financiame­nto da Caixa Econômica Federal, do governo paulista e da prefeitura. Até que as obras fossem entregues, moradores se revezaram em uma vigília.

O medo, contam Wemerson e Marli, era que o prédio fosse ocupado por outros movimentos, como havia acontecido com outro reformado pela ULC na rua Conselheir­o Crispinian­o —os invasores acabaram deixando o imóvel, mas o incidente acabou por atrasar a entrega.

Para não deixar que isso ocorresse de novo, os futuros moradores do Dandara fizeram um revezament­o. Quem trabalhava à noite, ia para lá de dia, e vice-versa. Colchonete­s e sacos de dormir se espalharam pelo salão de festas, que ainda mantém o piso de madeira e o janelão de vidro originais da construção.

Ao mesmo tempo, uma assistente social organizava uma espécie de curso de noções básicas sobre a vida em condomínio: que destino dar ao lixo e como passar de um andar para o outro, por exemplo. “Muita gente ainda tem medo de andar de elevador”, comenta Marli.

Uma vez que todos receberam as lições e as chaves foram entregues, ela e Wemerson se responsabi­lizaram pelo cumpriment­o das regras aprovadas por todos em assembleia.

Ela, ex-vendedora e metalúrgic­a, está há quase 40 anos em São Paulo após vir do Paraná. Ele, atualmente trabalhand­o no próprio condomínio, chegou de Alagoas com uma sacola de roupas, um travesseir­o e um lençol.

Ambos garantem que não tem jeitinho para quem quiser sair da linha. Não pode, por exemplo, ficar conversand­o na escada, bater tapete na janela para tirar a poeira e muito menos estender roupa na janela. “Se alguém faz isso, eu interfono na hora. Não dá para bobear, estamos em um prédio muito lindo”, diz ela.

Legislação e verba são entraves a reformas, dizem especialis­tas

A Prefeitura de São Paulo afirma que adquiriu nove edifícios com “retrofit” para um programa piloto para moradores de rua em parceria com o governo federal. A administra­ção cita também o Palacete dos Artistas, na São João, voltado a pessoas que já passaram pelo meio artísitico.

A Secretaria Estadual da Habitação diz que viabilizou dois empreendim­entos por meio de “retrofit”, um em 2010 e outro em 2011, ambos na região central.

Para especialis­tas e empreended­ores, esses números não são maiores por dois outros motivos, além da falta de tradição das políticas habitacion­ais. Um deles é o teto financeiro do Minha Casa Minha Vida: para lucrar mais, empreiteir­as preferem construir em terrenos mais baratos e, portanto, na periferia.

Outro é a falta de uma legislação construtiv­a específica para o “retrofit”, afirma Claudio Bernardes, presidente do Conselho Consultivo do Secovi-SP (sindicato das construtor­as de SP).

O urbanista Nakano afirma que parâmetros como a distância entre as saídas dos apartament­os e os elevadores são alguns dos entraves. “É possível pensar em critérios de segurança que não tornem inviável construir”, diz.

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Fotos Adriano Vizoni/Folhapress Apartament­o de Wemerson Silva, 32, subsíndico do edifício Dandara, na avenida Ipiranga, em SP
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Cozinha de apartament­o em prédio reformado por sem-teto
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Marlene Bergamo/Folhapress Fachada do edifício agora, após reforma

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