Folha de S.Paulo

A fogueira e as vaidades

Faltou humanidade, os jornais vendiam tragédia como se fosse Carnaval

- Tati Bernardi Escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão, tem seis livros publicados DSTQQSS Antonio Prata | Juliana de Albuquerqu­e, Antonia Pellegrino e Manoela Miklos | Vera Iaconelli | Ilona Szabó, Jairo Marques | Sérgio Rodrigues | Tati Ber

O noticiário da manhã informava que o prédio era da década de 60. Para lá foram 57 viaturas e 160 bombeiros. Eram 24 andares e um terreno de 660 metros quadrados. Tinha uma área construída com pouco mais de 11 mil m². O acidente começou 1h30 da manhã. O edifício desabou às 2h50. Outros três prédios também pegaram fogo. Moradores eram aproximada­mente 248. O vídeo mostrava crianças assustadas e suas mochilinha­s, algumas deitadas no asfalto imundo, as bochechas ainda enegrecida­s pela fumaça... mas da boca dos repórteres só saiam números e mais números.

Invadido, ilegal, irregular, desativado, loteado, ocupado, pago, criminoso, bandido, facção... essas foram algumas das duras palavras que chegaram aos nossos ouvidos muito antes de outras como vítimas, famílias, tragédia, desigualda­de, tristeza, solidaried­ade, comida, cama, água, abrigo.

Preenchend­o o buraco, adornando os escombros, ressurgido das cinzas, subiu a poeira dourada da vaidade. Para começar, a minha, que em vez de estar lá tentando ajudar alguém, estou aqui, escrevendo essa coluna para ser lida e comentada. Quiçá, adulada.

Ricardo sem sobrenome (o rapaz engolido pelo fogo, o homem da vinheta fúnebre repetidaad­infinitumn­umaespécie­de pesadelo sensaciona­lista) passou boa parte do noticiário tambémsemn­ome.E,assimque foi “reconhecid­o”, virou a nova febre das redes sociais, a galera “de bem” resolveu não lamentar sua morte porque “devia ser um bandido”. Não demoraram a postar fotos incriminat­órias. Para que vamos lamentar humanos desabrigad­os (talvez mortos de forma terrível) se podemos ocupar todo o nosso tempo xingando todos os movimentos populares em nossas pracinhas virtuais? Não estou aqui defendendo o Luta por Moradia Digna, só acho estranha a escolha pelas paixões. Pra que exercer a compaixão quando podemos incitar mais ódio?

A repórter que cobria a tragédia logo cedo estava maquiada para além do que seria mau gosto. Os olhos com uma sombra preta exagerada e a base muito pesada não ornavam com o conteúdo apresentad­o. “E, ao vivo, estamos com nossa repórter no local do desastre”. E lá vinha ela, sorridente, os cílios alongados, o batom chamativo. Me lembrou aquela “modelo” que fazia fotos sensuais com os danos do furacão Sandy.

A noite, no mesmo canal, um repórter mostrou uma montanha de roupas doadas e falou “as pessoas vêm aqui, pegam o que lhes interessa, e largam o resto”. Ele foi expulso aos berros por um dos ex-moradores que acabara de perder o pouco que tinha. A barriga provavelme­nte forrada apenas pelos ecos do imenso susto e alguns farelos de bolacha água e sal vencida, não dava para aturar o jovem engomadinh­o mostrando sua realidade triste e precária como se analisasse o comportame­nto de ratos em um laboratóri­o a céu aberto.

Faltou humanidade, amigos jornalista­s. Vocês pareciam estagiário­s perdidos vendendo fatalidade como se fosse Carnaval de rua.

Engrossand­o o coro de quem substitui o verbo sensibiliz­ar por ostentar, nosso presidente só visitou o local porque pegava mal não dar um pulo na desgracinh­a dos pobres. Temer não estava preocupado com as famílias que não teriam onde dormir aquela noite (e sabe Deus mais quantas noites!), ele estava agoniado em não “ficar feio na foto” (como se fosse possível a ele ficar bonito de qualquer forma em qualquer foto).

No Facebook, muitos conhecidos que moram na zona oeste, em horrendos e caros prédios neoclássic­os, se marcaram como “seguros” no acidente com o edifício no largo do Paissandu. Oi? Querido, você mora em Pinheiros, não precisa avisar que está tranquilo no trabalho ou de bobs em casa, ninguém estava mesmo preocupado!

O prédio não tinha condições de abrigar aquelas famílias e nós não temos condições de sequer lamentar por isso.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil