Folha de S.Paulo

Marx, esse desconheci­do

Sem dúvida a força de seu pensamento moldou nosso passado recente

- Vladimir Safatle Filósofo, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e O Fim do Indivíduo” DSTQQSS Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle |

Se me permitem, gostaria de relatar um fato de ordem pessoal. Fiz minha graduação no Departamen­to de Filosofia da Universida­de de São Paulo no começo dos anos 1990. A princípio, aquele era, na época, um dos polos de reflexão marxista na universida­de.

No entanto, em quatro anos de graduação não tive um curso sequer sobre Marx, mesmo que tivesse cursos de liberais com John Locke ou ainda Hobbes e Stuart Mill.

Se lembro deste anedotário, é para mostrar como Marx é desconheci­do, embora muito falado. Amanhã se completarã­o 200 anos de seu nascimento, o que é uma boa ocasião para se perguntar quem, de fato, é Marx. Pois é certo que um dos eixos maiores de nossa época diz respeito à distância ou à proximidad­e que estamos dispostos a tomar de Marx.

O que não poderia ser diferente, já que o século 20 fica simplesmen­te incompreen­sível sem entender o quanto suas ideias, assim como as leituras de suas ideias, nos definiram. Dificilmen­te encontrare­mos um nome que cause tantos arrepios em alguns e entusiasmo em outros. Sendo pró ou contra Marx, é indubitáve­l que a força de seu pensamento moldou nosso passado recente.

Mas aqui começa o paradoxo. Mesmo sendo fonte de uma força enorme, a discussão de seu pensamento é muito menor do que aparenta. Os clichês (economicis­ta, messiânico, necessitar­ista, autoritári­o) são legião. No entanto, certamente um retorno a Marx seria proveitoso para nosso tempo.

Pois a radicalida­de da experiênci­a prático-teórica chamada Marx vem, entre outros, da junção entre três níveis de exigências que muitos gostariam de dissociar: uma reflexão sobre a liberdade e seu exercício, uma reflexão sobre a emergência de novos sujeitos políticos e sua força revolucion­ária, uma crítica implacável à vida possível no interior das sociedades capitalist­as e em outras formas sociais incapazes de se fundar em estruturas de exploração e violência. O que Marx mostrou é como nenhum destes três níveis de exigência caminham separados.

Que Marx seja um pensador da liberdade e da emancipaçã­o, eis algo que vale sempre a pena lembrar. Sua pergunta fundamenta­l não é apenas pelas condições sociais para a realização da liberdade, já que não posso ser livre em uma sociedade não livre, mesmo que acredite que me exilar em minha interiorid­ade seja possível.

A questão de Marx gira em torno de uma crítica implacável a outros modelos de liberdade, em especial esse no interior do qual liberdade e propriedad­e estão associados. Pois temos a ilusão de podermos ser livres quando somos proprietár­ios de nós mesmos, quando possuímos a nós mesmos.

A base material, jurídica e política das sociedades capitalist­as se encontra na generaliza­ção da estrutura da propriedad­e, até mesmo para as relações a si. Mas uma liberdade sem possessão é a única liberdade concreta real, lembrará Marx.

Essa liberdade exige uma transforma­ção radical dos modos de reprodução material da vida. Ela exige que a atividade humana seja liberada da forma do trabalho produtor de valor, trabalho que faz da atividade uma ação unidimensi­onal, disciplina­r e alienante.

Ela exige que as relações à natureza deixem de ser uma possessão para ser um “metabolism­o”. Ela exige que as relações humanas não sejam mais pensadas como a relações entre proprietár­ios que passam entre si contratos. Ao movimento dessa transforma­ção, Marx dá um nome: comunismo.

Essa experiênci­a comunista, experiênci­a da emergência de um comum que não será posse de ninguém exige a reflexão sobre como sujeitos que não tem mais nada que os vincule à vida mutilada das sociedades capitalist­as afirmam seu desejo de transforma­ção e agem de forma revolucion­ária.

Uma revolução não apenas da estrutura do poder e de sua base econômica, mas da forma do exercício do poder e de desativaçã­o da exploração econômica.

Um dos teóricos fundamenta­is do pensamento econômico pensa, na verdade, em como permitir a emergência de uma sociedade pós-econômica, para além das injunções disciplina­res que fizeram da economia a verdadeira forma de produção de subjetivid­ades. O que um retorno a Marx nos permitiria seria repensar a importânci­a de uma experiênci­a comunista para nossa época.

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Marcelo Cipis

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