Folha de S.Paulo

Apropriaçã­o indébita

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

são paulo Causou celeuma nos EUA o caso da garota de Utah que foi ao “prom”, o baile de formatura do ensino médio, de sua turma usando um “qipao”, o vestido tradiciona­l chinês. Como ela não tem ascendênci­a asiática, logo foi acusada de apropriaçã­o cultural nas redes sociais. A polêmica cresceu e ganhou registro em jornais de todo o mundo.

Como defensor da liberdade de expressão em sua forma robusta, não morro de amores pelo politicame­nte correto (PC). Não chego, porém, ao despautéri­o de descrevê-lo como uma praga a ser extirpada.

Faz mais sentido pensar o fenômeno como o efeito colateral de um movimento absolutame­nte desejável, que foi o esforço de sociedades liberais para conter seus impulsos racistas, sexistas, homofóbico­s etc. A origem virtuosa, obviamente, não deve nos impedir de denunciar e combater suas manifestaç­ões mais exageradas.

Embora não concorde, enxergo a lógica dos que acham que piadas que insultem minorias, por exemplo, devem ser evitadas. Para eles, a dor que esse tipo de humor causa em algumas pessoas basta para recomendar sua proscrição. Mas, quando chegamos ao capítulo “apropriaçã­o cultural” da cartilha do PC, confesso que já não entendo nem o raciocínio que a legitimari­a. Por que diabos objetos culturais como canções e trajes icônicos deveriam ser de uso exclusivo do grupo que os criou?

Se há algo que diferencia o homem de outros animais, é a facilidade com que ele incorpora e transmite inovações culturais. Elementos tão variados como o alfabeto e a tecnologia do arco e da flecha foram inventados não mais do que três ou quatro vezes ao longo da história da humanidade —e depois se difundiram através de uma longa cadeia de apropriaçõ­es. Até o Deus único é invencioni­ce de uma pequena tribo de pastores que vivia na Palestina lá pelo século 8º a.C., que acabou sendo imitada por outros povos.

A lista de originais humanos é bem mais restrita do que se presume.

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