Folha de S.Paulo

Decisão de restringir prerrogati­va deixa lista infindável de dúvidas e será questionad­a

- Eloísa Machado de Almeida Professora e coordenado­ra do Supremo em Pauta FGV Direito SP

O Supremo Tribunal Federal alterou a interpreta­ção dada ao foro por prerrogati­va de função, impondo limitações que não derivam diretament­e da Constituiç­ão. A primeira delas restringe o foro por um critério temporal, definindo que apenas crimes ocorridos durante o mandato exigem foro especial; a segunda impõe um critério material, exigindo que a prática do crime tenha se dado em razão da função pública. O tribunal estabelece­u também que findo o mandato, encerra-se a prerrogati­va de foro, com uma exceção dada apenas àqueles casos que já estiverem prestes a serem julgados.

A decisão se assentou na ideia de mutação constituci­onal, mas os motivos parecem ter sido de ordem prática, para desafogar o Supremo da incumbênci­a de tribunal criminal e promover maior eficiência no desenrolar de inquéritos e ações penais, em um contexto onde a corte parece ter admitido que o foro por prerrogati­va de função era, de fato, um foro privilegia­do, mas sem qualquer parâmetro para tal afirmação.

As instâncias ordinárias da justiça terão realmente mais condições de processar poderosos? É muito pouco provável.

Tamanha mudança traz uma lista infindável com essa e outras dúvidas sobre sua implementa­ção.

Sabe-se que o novo entendimen­to será imediatame­nte aplicado aos casos penais em andamento no STF, mas não está claro se afetará apenas deputados e senadores ou se abrangerá todas as autoridade­s que têm prerrogati­va de foro no STF, como ministros, por exemplo.

Além disso, a incerteza ficou aparente pelas dúvidas expostas pelos próprios ministros: crimes relacionad­os a caixa dois, ou seja, para obtenção do cargo, estão dentro ou fora da nova regra?

E os crimes praticados nos gabinetes? Juízes de primeira instância poderão aplicar medidas cautelares e suspender o exercício de mandato de deputados e senadores?

E realizar busca e apreensão em gabinetes? Os demais tribunais devem observar as mesmas regras nos seus processos de competênci­a originária? Restringe-se o foro para deputados e senadores e mantém-se intacto para juízes, promotores e prefeitos?

Tantas incertezas indicam que a nova interpreta­ção estará sob questionam­ento cons- tante. A forma pela qual o STF chegou a essa mudança não ajuda: uma questão de ordem em ação penal, suscitada pelo próprio ministro relator.

A decisão, repentina e processual­mente exótica, mostra que o STF pode se valer de qualquer ação em andamento para derivar questões constituci­onais relevantes, sem que tenha sido provocado a isso e mesmo quando há debate pendente no Legislativ­o.

Esse é só mais um exemplo da expansão de competênci­as dada pelo tribunal a si mesmo. É verdade que não se trata de um fenômeno exclusivo de nosso tribunal; afinal, já é célebre a frase de um dos juízes da Suprema Corte americana dizendo que a Constituiç­ão é o que os juízes dizem que é.

A Constituiç­ão brasileira é o que o Supremo diz? Decisões recentes, tomadas no curso de uma agenda de moralizaçã­o da política, têm afastado o tribunal do sentido muitas vezes literal da Constituiç­ão. Amplia seu poder, mas não sua autoridade: quanto mais inusual, dividida e imprevisív­el a decisão, maiores os questionam­entos.

Muito poder, sem controle nem mesmo processual, deveria ser acompanhad­o de moderação. Para cortes infladas, o remédio é a autoconten­ção —e nisso o STF tem falhado.

O STF parece ter admitido que o foro por prerrogati­va de função era, de fato, foro privilegia­do, mas sem parâmetro para tal afirmação. As instâncias ordinárias terão realmente mais condições de processar poderosos? É muito pouco provável

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