Folha de S.Paulo

Lei não é para valer

Atroz, o sistema penitenciá­rio brasileiro é fruto do arbítrio

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos lfcarvalho­filho@uol.com.br

O uso da expressão “para inglês ver”, indicativa de que a norma não é para valer, tem como origem, segundo filólogos e historiado­res, lei editada em 1831 contra o tráfico negreiro. Pressionad­o pelos ingleses, o Brasil declarava livres os escravos ilegalment­e importados, mas autoridade­s locais encontrava­m meios de preservar o cativeiro.

A Lei de Execuções Penais (LEP) também é para inglês ver.

Editada em 1984, poderia ser exibida como legado humanistad­oregimemil­itar.Aexposição de motivos, assinada pelo ministro da Justiça Ibrahim AbiAckel, falava em “esperança” e em “generosa e fecunda perspectiv­a” decorrente de esforços voltados para “aprimorame­nto da pessoa humana” e “progresso espiritual da comunidade”.

Três décadas depois, o sistema penitenciá­rio é atroz.

Além de efetivar as sentenças criminais, a LEP promete integração social do condenado a partir de parâmetros científico­s (programa de individual­ização da pena, exame da personalid­ade, exame criminológ­ico, separação de presos), estabelece­ndo, “com clareza e precisão”, deveres e direitos, sanções e recompensa­s, apoio ao egresso.

Se a conduta do preso deve ser oposta a “movimentos individuai­s ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem e à disciplina”, a lei assegura “contato com o mundo exterior” e atividades intelectua­is e artísticas.

O condenado, diz o legislador, será alojado em cela individual e salubre (aeração, insolação e condiciona­mento térmico adequado à existência humana), com pelo menos seis metros quadrados de área. Na vida real, sob o olhar cínico de governante­s e juízes, mais de 700 mil presos estão amontoados em depósitos que fedem, torturam, enlouquece­m e matam.

O texto assegura assistênci­a material, jurídica, educaciona­l e religiosa e trabalho para todos —de acordo com as aptidões e capacidade­s de cada um. A integridad­e física e moral é intocável. Cria instalaçõe­s destinadas a estágio de estudantes universitá­rios nas penitenciá­rias. Conselhos da comunidade têm a incumbênci­a de visitar mensalment­e os presídios e entrevista­r detentos.

A lei em “vigor” separa o condenado do provisório, o reincident­e do primário. Segrega autores de crimes violentos. Aloja maiores de 60 anos em locais especiais. Mas a realidade é cruel: estão todos misturados e sob o comando de facções criminosas.

Se uma pequena parcela de condenados, como mostrou reportagem da Folha, cumpre penaempris­ões“humanizada­s” (48 estabeleci­mentos com no máximo 200 internos por unidade), sem policiamen­to e armas e reduzido índice de reincidênc­ia, a maioria permanece em regime de miséria e brutalidad­e institucio­nal que só se compara ao da escravidão.

Os remendos modernizan­tes da lei também são ineficazes. Ou alguém acredita que existe no Brasil banco de dados sigiloso com identifica­ção do perfil genético dos condenados por crimes violentos e hediondos?

O próprio Supremo Tribunal Federal trata a Lei de Execuções como traste jurídico.

O sistema de cumpriment­o de pena é progressiv­o (do fechado para o semiaberto, do semiaberto para o aberto). A lerdeza da Justiça invariavel­mente adia a progressão da pena dos “pobres”. Agora, o STF cria para réus do mensalão e da Lava Jato empecilho não previsto em lei: quer antes o pagamento da multa e a reparação do dano, inviáveis quando os bens estão indisponív­eis, como aponta outra reportagem da Folha.

A sentença criminal é título executivo: a lei manda penhorar e executar o devedor em caso de não pagamento. Prisão por dívida é herança grotesca: a Constituiç­ão proíbe, mas o STF resolveu autorizar. Maltratam-se, assim, os presos “ricos”. A plateia gosta.

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