Folha de S.Paulo

Entre êxtase, aversão e fadiga, já não sabemos se lemos ou fomos lidos

Perto das eleições, é um consolo que venha a público a bela tradução de ‘Os 120 Dias de Sodoma’, do Marquês de Sade

- -Roberto Zular Professor do departamen­to de teoria literária e literatura comparada da USP

LITERATURA Os 120 Dias de Sodoma ***** Marquês de Sade, ed. Penguin, tradução Rosa Freire d’Aguiar, R$ 39,90 (510 págs.) A pouco mais de 120 dias das eleições é um consolo que venha a público a bela tradução de Rosa Freire d’Aguiar dos 120 dias de Sodoma do Marquês de Sade. É que o esforço de erigir uma dicção setecentis­ta põe a nu a genealogia da razão que ainda sustenta nossas instituiçõ­es democrátic­as.

Não é por acaso que os quatro libertinos que se fecham em um castelo por quatro meses para ouvir histórias de quatro mulheres da vida sejam um conde, um bispo, um magistrado e um banqueiro. As paixões ali narradas e praticadas mostram a íntima relação que o poder estabelece entre lei e perversão.

Como se diz no Brasil, há sempre buracos (brechas) na lei. Como há buracos (orifícios) por todo o corpo, cujos vazios e secreções se prestam a infinitas acoplagens. Mas é ao atravessar esses buracos e dar corpo à lei que, como mostrou Livia Gomes, as paixões sadeanas colocam em xeque nossas concepções de hu- manidade, produzindo novos corpos e articulaçõ­es linguístic­as. A cena orgíaca é, assim, constituíd­a pela equivocida­de da perversão e da norma, do gozo e da linguagem, dos corpos e da lei.

Claro que o leitor deve estar pensando na repressão da violência e da crueldade que funda qualquer sociedade. Mas Sade funda sua ficção ao mostrar a ficção dessa fundação. Isto é, há sempre algo fora da lei que a sustenta e a funda. E há sempre um excesso de linguagem, a literatura, que assume o mal e o gozo como espaço paradoxal de reinvenção simbólica de novas formas de vida.

Daí o espanto que um pequeno rolo de papel perdido nas paredes da Bastilha —onde Sade esteve preso— ainda possa causar tanta perplexida­de. Mesmo hoje é quase impossível não ser afetado pelas paixões ali descritas. Como se a leitura fosse ela também uma paixão libertina.

A forte estrutura de planos e regulament­os imposta tanto às orgias quanto à narrativa duplicam as paixões em um jogo de revelações sempre adiadas. Nos vazios de uma escrita inacabável, o corpo se joga, girando em torno de algo impossível de alcançar.

No final, entre o êxtase, a aversão e a fadiga, já não sabemos se lemos ou fomos lidos. Mas como estamos em uma escola de libertinag­em, aprendemos ao menos o núcleo pivotante da nossa constituiç­ão. Há sempre mais de uma lei, uma sobredeter­minação que atravessa a natureza e a razão, o corpo e a linguagem, as sensações e a moral, a palavra e a voz.

Ao tornar equívocos nossos ideais e nos jogar nas conexões parciais de nossas pulsões, Sade escancara que mesmo a lei, a razão e a moral mostram sua face violenta quando se tornam o único princípio hierárquic­o. Se ainda é um desafio, como propõe Eliane Robert Moraes, ler Sade hoje, isto se dá em parte porque vivemos uma nostalgia dessas determinaç­ões unívocas.

Se aceitássem­os o paradoxo do gozo libertino talvez pudéssemos pensar de fato em uma ética e uma política. Aí quem sabe não precisaría­mos de um juiz como herói, nem encaminhar as decisões políticas a um Supremo Tribunal. E na pior das hipóteses, a festa pela prisão de um ex-presidente não se daria em uma “casa de tolerância” não por acaso chamada Bahamas.

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Martin Bureau/AFP Manuscrito de Sade feito na Bastilha em 1875

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