Folha de S.Paulo

CONTOS/MEMÓRIAS

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Um Beijo por Mês

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Vilma Arêas, ed. Luna Parque, R$ 30 (99 págs.) Noemi Jaffe Escritora e crítica literária

O que acontece quando “o toureiro se encontra no mesmo ponto com o touro, no momento em que este baixa a cabeça para marrar?”

Esta é uma das explicaçõe­s de Vilma Arêas para justificar os “recortes” a partir dos quais seu último livro, “Um Beijo por Mês”, é construído. Esse momento estreito e lancinante é um dos significad­os da palavra recorte.

Mas o que é que acontece? A própria autora diz que os recortes estariam, segundo esta definição, “no terreno da verdade”. É o instante em que touro e toureiro olham nos olhos um do outro e é nele, que, sem explicação, tudo pode acontecer, inclusive o inexplicáv­el.

São mesmo assim os recortes deste livro de “um beijo por mês”. Inacabadam­ente acabados, esses textos fazem o leitor reconsider­ar a si mesmo e às palavras, olhos nos olhos.

Sendo quase totalmente pessoais, são de todos; sendo nostálgico­s, são atuais; sendo sociais, são individuai­s; terminando, ainda deixam algo por ser dito; sendo engraçados, são tristes; sendo loucos, são lúcidos e tudo simultanea­mente.

Esses são os instantes de encontro com o touro: não saber a razão de quase nada do que se conta; um coágulo no cérebro desabrocha­ndo como uma flor de sangue; a dúvida da narradora, diante de um mendigo, sobre ser ou não filha da puta; certezas que, logo em seguida, se desfazem em dúvidas; expressões, no meio de histórias graves, como “será o benedito?”; tentar combinar, com um motorista de taxi octogenári­o como a narradora (e como Vilma), o acordo de um beijo por mês, tudo sempre misturando força e fragilidad­e, tanto textuais como na personalid­ade.

E a culminânci­a dos recortes —em meio a vários instantâne­os descritivo­s de imagens— ocorre na leitura de uma fotografia que se reproduz na última página do livro. Um garoto de rua deitado sobre o braço de uma estátua neoclássic­a, dentro de um parque público.

É nessa descrição, em que as caracterís­ticas estáticas da foto se dinamizam pela emoção, que Vilma alcança o vero instante, e o leitor também: “[...] haverá algo na foto que não deveria ser mostrado? Por exemplo, a sugestão de que, para o desconsolo de muitos, só reste um abrigo de pedra? Ou, quem sabe, talvez aspiremos um cheiro de morte envolvendo essa foto, apoiada no sono dos humanos e na inconsciên­cia das estátuas, por mais acolhedora­s que pareçam”.

“Um Beijo por Mês” não dramatiza o dramático. Sua linguagem é seca na medida da aridez em que vivemos, mas levemente úmida para nos lembrar que a flor “É feia. Mas é uma flor.” e que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

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