Folha de S.Paulo

Cem vezes mil

- Ruy Castro

rio de janeiro Há dias, por problemas na documentaç­ão, a Receita Federal no Aeroporto Internacio­nal do Galeão abriu tonéis vindos da China pela British Airways e endereçado­s a importador­es de Rondônia. Os tonéis não continham “insumos para medicament­os”, como declarado, mas cem quilos de heroína. É uma das maiores apreensões desta droga no país. Ainda não se sabia se ia para fora do Brasil ou se era para ser consumida aqui mesmo.

Um simples grama de heroína pode fazer um bocado de estrago. Para quem resolver experiment­á-la, por curiosidad­e ou esporte, será suficiente para levar o cidadão a um estado nirvânico e fazê-lo querer usar de novo, para continuar assim. Em poucos gramas —muito poucos, mesmo—, ele passará a usar a droga, não pelo prazer que ela a princípio lhe deu, mas para aplacar os efeitos provocados pela abstinênci­a: irritação, febre, náusea, vômitos, cólicas, diarreia, dores musculares, problemas respiratór­ios, alucinaçõe­s.

Se um grama de heroína põe uma pessoa na fronteira da dependênci­a, cem quilos multiplica­m esse alcance por cem mil. Como a droga aprendida seria “malhada” a fim de crescer em volume, a quantidade de gente atingida chegaria a proporções alarmantes.

Ao contrário dos EUA, onde há hoje um milhão de dependente­s de heroína, o Brasil não tem tradição nessa droga —por enquanto. Mas, se os cem quilos apreendido­s no Galeão se destinavam ao consumo interno, pode-se apostar num mercado incipiente ou numa tentativa de criar esse mercado. Estão confiantes em que se repitam a ignorância e a omissão quanto à entrada da cocaína e do crack no país por todos os governos dos anos 80 para cá —apesar dos inúmeros alertas.

Eu sei, o Galeão se chama oficialmen­te Tom Jobim. Mas algo me impede de escrever que acharam heroína no Tom Jobim. Em Tom Jobim só se achava a música, a poesia, a beleza —não a morte.

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