Folha de S.Paulo

A lógica das ocupações

Por que Temer é tão odiado?

- Hélio Schwartsma­n Nabil Bonduki Professor titular da FAU-USP, ex-vereador e relator do Plano Diretor de São Paulo. Escreve às terças

são paulo A avaliação de Michel Temer nunca foi boa. Quando contava dois meses de governo, o Datafolha computava-lhe 14% de ótimo/bom e 31% de ruim/péssimo. Com sete meses, esses números passaram respectiva­mente a 10% e 51%. A impopulari­dade continuou aumentando até estabiliza­r-se em 70% de apreciaçõe­s negativas e 6% de positivas.

A famosa fita de Joesley Batista, que pôs o presidente no olho do furacão dos escândalos de corrupção, decerto contribuiu para a deterioraç­ão de sua imagem, mas não a causou, apenas acentuando um movimento que já estava em curso.

O interessan­te aqui é que Temer até produziu boas notícias. Além do fato de ter sido sob sua administra­ção que o país saiu da profunda recessão em que mergulhara, o presidente fez pequenas bondades, como liberar o saldo de contas inativas do FGTS, e tentou navegar em teses populares, ao determinar a intervençã­o federal no Rio de Janeiro.

OK. Não é nada muito fantástico, mas são coisas que, em condições normais, acrescenta­riam alguns pontinhos à popularida­de do governante. No caso de Temer, porém, nada de positivo parece capaz de associar-se à sua imagem.

Acredito que há uma antipatia congênita contra Temer. Minha hipótese é que ela tem origem no fato de o mandatário ter agido muito abertament­e para derrubar Dilma Rousseff. Embora a maioria da população apoiasse o impeachmen­t, o vice que faz de tudo para herdar o cargo fica com pecha de traidor, o que não é bom para a imagem.

Se há algo que a psique humana abomina, são traidores. Não é uma coincidênc­ia que seja para eles que Dante Alighieri, na “Divina Comédia”, reservou o nono e mais extremo círculo infernal. E, nele, na quarta e última esfera, estão os que traíram seus mestres ou reis. Destes, três —Judas, Brutus e Cássio— ainda recebem a distinção de ser torturados pessoalmen­te por Satanás.

Diante desse retrospect­o, Temer até que não vai tão mal. Dois ingredient­es são essenciais para as ocupações como a da torre de vidro que se incendiou: a falta de moradia destinada à população de baixa renda e a existência de inúmeros edifícios ociosos.

A falta de moradia para os pobres é tão antiga como o Brasil urbano. A primeira ocupação noticiada ocorreu em 1897, no Morro da Favela (RJ), realizada por soldados egressos da Guerra de Canudos.

Desde então, organizada­s ou não, elas não pararam de crescer. Cerca de 12 milhões de pessoas vivem em áreas urbanas ocupadas no país! No Rio, 22% da população mora em favelas e, em São Paulo, são 18%.

O Brasil tolera e convive com ocupações, desde que elas não incomodem o mercado ou as áreas nobres. A favela é uma “solução” para o capitalism­o selvagem. Ela permite que trabalhado­res mal remunerado­s possam sobreviver, sem apoio público, evitando que uma multidão vague e durma nas ruas...

É a “lógica da desordem”, feliz expressão cunhada pelo professor Lúcio Kowarick.

As ocupações de prédios nos centros partem da mesma “lógica”, mas têm outro significad­o simbólico. Expõem a pobreza e contestam a segregação, incomodand­o as classes privilegia­das. Garantem o direito à cidade —acesso às oportunida­des propiciada­s pelo centro— mesmo em um abrigo precário e inseguro. São uma anomalia ao modelo de cidade excludente.

E por que os edifícios ficam ociosos? É resultado da especulaçã­o, afirmou Boulos (Tendências / Debates, 4/5), tese contestada por Marcos Lisboa (Opinião, 6/5), para quem isso ocorre porque as empresas fogem do centro, cansadas da inseguranç­a, sujeira e dificuldad­e de restaurar os prédios antigos.

Ambos têm certa razão. Prédios antigos ficam obsoletos, enquanto o mercado prefere abrir novas frentes imobiliári­as, em uma lógica especulati­va. Usos mais nobres abandonam a região, onde convivem diferentes classes sociais.

Aos poucos, os prédios são abandonado­s e seus condomínio­s ficam sem capacidade para reformá-los. Ao final, pouco valem, pois reabilitar é mais caro que uma nova construção. A ociosidade atrai os sem-teto.

O retrofit é dificultad­o pela complexida­de dos projetos e pelo preço especulati­vo pedido pelos proprietár­ios, que não acreditam que seus “tesouros” perderam o valor.

Por isso, os instrument­os de reforma urbana criados pelo Plano Diretor de São Paulo são essenciais para forçar os proprietár­ios a dar função social aos imóveis. Até 2016, a prefeitura notificou 2.000 imóveis ociosos, que já deveriam estar pagando IPTU progressiv­o. Mas, em 2017, a ação foi paralisada.

Sem uma nova política fundiária e habitacion­al, as ocupações, organizada­s ou não, continuarã­o. Elas fazem parte da lógica urbana brasileira.

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Laerte

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