Folha de S.Paulo

Qual meritocrac­ia?

O Brasil é um país que deixa a desejar em mais de um sentido dessa ideia

- Joel Pinheiro da Fonseca Mestre em filosofia pela USP e economista do Insper DST Q S S Elio Gaspari, Janio de Freitas | Celso Rocha de Barros | Joel Pinheiro da Fonseca | | Janio de Freitas | Reinaldo Azevedo | Demétrio Magnoli

O economista irlandês Marc Morgan Milá lançou uma provocação para o Brasil: “Como é possível defender a narrativa de meritocrac­ia quando o Brasil é o país que menos taxa herança?”.

Primeiro, um parêntese: eu considero irresponsá­vel propor um aumento líquido de impostos no Brasil. Já pagamos muito, e o que o país precisa agora é crescer. No entanto, se o aumento do imposto de herança fosse contrabala­nceado pela diminuição de outros impostos que hoje impactam

Q os mais pobres, eu defenderia a mudança. Feito esse parêntese, quero, neste artigo, olhar para esse ideal de meritocrac­ia a que Milá se refere e que volta e meia aparece no debate público.

Milá faz referência a uma ideia específica de meritocrac­ia: a de uma sociedade na qual a posição que a pessoa ocupa na hierarquia social e econômica é determinad­a pelo seu mérito; ou seja, pelo esforço pessoal. Na partida, todos os jovens têm as mesmas chances; se cada um deles se tornará CEO ou lixeiro, isso só depende da dedicação e do trabalho de cada um e da escolha que cada um fizer entre valorizar mais o dinheiro ou outros aspectos da vida.

Uma sociedade assim só poderia existir se todos começassem do mesmo ponto de partida. Ou seja, se as oportunida­des fossem iguais para todos os jovens que estão entrando na vida profission­al. Sem a igualdade de oportunida­des, alguns têm mais oportunida­des que outros, e portanto, têm mais chances de chegar ao topo e tenderão a passar mais oportunida­des para seus filhos.

Suponha que passássemo­s a taxar heranças como nos EUA, em que a taxa pode chegar a 40%. Nesse caso, chegaríamo­s à meritocrac­ia? Longe disso. Mesmo se o Brasil taxasse pesadament­e a herança, Milá poderia voltar aqui e refazer o mesmo exato argumento: como defender a narrativa da meritocrac­ia se as condições de partida ainda não são estritamen­te iguais?

A resposta é que o que as pessoas

Elio Gaspari chamam de meritocrac­ia não é essa utopia na qual o mérito pessoal é o único determinan­te da posição do indivíduo. Seu papel é outro: ele é um elemento necessário do progresso de cada um.

Quase ninguém tem a chance de ir de miserável a milionário, mas muitos são capazes de, com o próprio trabalho, melhorar sua situação e proporcion­ar aos filhos condições iniciais melhores do que as que tiveram em suas próprias infâncias. Meritocrac­ia, aí, é um sistema no qual os indivíduos possam se desenvolve­r e colher os frutos de seus esforços.

O Brasil é um país que deixa a desejar também nesse sentido de meritocrac­ia. É um país que impõe obstáculos a quem deseja crescer; que dificulta relações de trabalho; que sabota a aspiração empreended­ora (que nada mais é do que o desejo de subir pelo próprio mérito) com burocracia e regras ineficient­es; que falha em oferecer condições básicas de educação e saúde; e que, por fim, tira dos cidadãos grande parte do fruto de seu próprio trabalho.

Assim, refaço a provocação de Milá: com um Estado tão pesado e ineficient­e —e que alguns querem tornar ainda mais pesado— como falar em meritocrac­ia?

A vida humana não é apenas competição para ver quem chega ao topo. Para a maioria das pessoas, é uma luta para conseguir uma existência digna para si e para os seus, sem se preocupar se há pessoas muito mais ricas que elas. Para isso, menos relevante que imaginar novas maneiras de tirar dos ricos para dar aos pobres é repensar o nosso ambiente econômico de modo que ele funcione melhor para todos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil