Folha de S.Paulo

Desabament­o moral

Longe de serem impotentes, pais e mães são grandes formadores de opinião

- Vera Iaconelli Psicanalis­ta, fala sobre relações entre pais e filhos, mudanças de costumes e novas famílias do século 21 DST Q S S Antonio Prata | Juliana de Albuquerqu­e, Antonia Pellegrino e Manoela Miklos | Vera Iaconelli | Jairo Marques | Sérgio Rodrig

A avó paterna das minhas filhas contava que, ao chegar a São Paulo pela primeira vez, nos anos 1960, não foram os arranha-céus ou o trânsito que a impression­aram. Foi a visão de um homem puxando uma carroça que a siderou. Até então, a pobreza do campo, ainda que nefasta, nunca lhe havia sido retratada por um homem ocupando o lugar destinado a um boi ou cavalo. Professora de português e profunda conhecedor­a da obra de Clarice Lispector —amor que transmitiu para as netas—, viu-se diante de uma versão urbana

Q da pobreza que ameaça a própria ideia de humanidade. Certamente não imaginava a grande possibilid­ade de se tratar de um “boia-fria” empurrado para a capital, fugido da miséria rural.

Segundo o IBGE, a região metropolit­ana de São Paulo — considerad­a o maior polo de riqueza do país— tem em torno de 700 mil pessoas vivendo na pobreza extrema. Elas não têm condições de se inserir no mercado de trabalho, ainda que houvesse oferta de emprego —que não há. Quem contratari­a como faxineira uma mulher maltrapilh­a, desdentada e faminta?

Quando ouvi minha sogra contando sua experiênci­a, me dei conta de minha própria naturaliza­ção do fato, pois nasci em São Paulo e não me lembrava da primeira vez em que havia visto um homem puxando uma carroça. Na infância devo ter achado curioso, na adolescênc­ia, repugnante, e na vida adulta, constrange­dor. A pobreza é um problema mundial, que o homem que vai à lua não tem sido capaz de resolver. Mas as interpreta­ções que lhe damos têm cores locais.

Parte fundamenta­l da função de criar os filhos é lhes interpreta­r o mundo. A família é o primeiro filtro por meio do qual a criança verá seu entorno. Ensinamos o “não” para aquilo que não desejamos que façam, nomeamos os objetos e suas funções, contamos histórias sobre nossa família, sobre nosso país e nosso planeta. Inventamos céu, inferno e “estrelinha­s” para responder sobre a morte.

A escola trará outras versões, ampliando as alternativ­as das histórias familiares. Por fim, espera-se que os filhos façam a “curadoria” das interpreta­ções

Ilona Szabó, às quais tiveram contato e, se tiverem liberdade e um bom acesso ao mundo, poderão tirar suas próprias conclusões.

Que mundo devemos ajudálos a nomear hoje?

Homens puxando carroças, a praça da Sé tomada por indigentes que fazem de seus lindos chafarizes chuveiro, pia e vaso sanitário. As ruas do centro cobertas por barracas improvisad­as para as noites, prédios abandonado­s servindo de abrigo para inúmeras famílias.

Como apresentam­os essa realidade aos nossos filhos, qual a versão que lhes contamos? Longe de sermos impotentes —crença que nos desrespons­abiliza—, somos os grandes formadores de opinião, por meio das interpreta­ções que lhes oferecemos.

Não bastasse a tragédia do desabament­o do prédio no largo do Paissandu, assistimos às versões mais indignas sobre o fato, nos dias que se seguiram ao acontecime­nto. Culpar as vítimas revela o medo que nutrimos de uma pobreza a qual podemos sucumbir. E como aqui pobreza é sinônimo de perda da cidadania, de todos os direitos sociais e da falta de recursos públicos (transporte, saúde, escola e moradia), temos o que temer. Movimentos sociais, que cuidam dessas pessoas com seriedade, são confundido­s levianamen­te com alguns oportunist­as, sempre de plantão, que exploram sua vulnerabil­idade. É a ausência do poder público que se mostra aí.

A questão que fica: apresentam­os a nossos filhos “o homem que puxa a carroça” como alguém que está à margem de uma sociedade que lhe vira as costas ou como um “marginal”, leia-se bandido?

A potência dessas versões nos revela como pais, como cidadãos e vai ser testada nas urnas em breve.

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